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#07 Escrever nas bordas

“É impossível viver. É preciso ora viver, ora escrever. Ora palavra, ora trabalho. Mas o seu trabalho é a palavra. E qualquer Trabalho, com maiúscula, é detestado por você.”
V. Dovlatov
ESCREVER NAS BORDAS
Reflexões despretensiosas sobre escrever e ler no Brasil

Gosto do que a poeta Bruna Mitrano falou sobre escrever em sua entrevista para o Como eu Escrevo: “Não planejo. Escrevo nos intervalos. No trem, no ônibus, na fila do mercado.” As pessoas, às vezes, acreditam que escrever envolve se sentar em uma poltrona confortável, durante toda a manhã, tomar uma xícara de café (ou chá) e deixar o texto fluir, diretamente dos pensamentos para os dedos, ao som de passarinhos. Talvez realmente seja assim para algumas pessoas, e sabemos que foi assim para muitos homens na literatura. Mas, essa não é a realidade de todos os escritores. E, particularmente, raramente foi a realidade de escritoras. Enquanto grandes escritores escreviam na paz do senhor, uma mulher precisava cuidar dos filhos, da casa e do marido, sem a possibilidade de ela mesma escrever. Por isso, já sabemos, Virgina Woolf foi tão importante ao dizer que a mulher precisava de independência financeira para se dedicar à escrita. Mas, sabemos também como é difícil chegar a esse tão sonhado “teto todo seu”. E veja: a independência financeira vem como uma pré-condição para escrever, algo anterior. O dinheiro parte de outro lugar, mas nunca da escrita. Quando deslocamos essas ideias para uma realidade periférica, a coisa muda ainda mais de figura. Em uma oficina do Mulheres que Escrevem discutimos a questão. Se fôssemos esperar pelo nosso teto, muitas de nós jamais escreveríamos. Por isso, aqui, a escrita se faz antes dessas condições ideais. Escrever, para uma mulher, envolve muitas vezes escrever nas bordas, nos intervalos, nas frestas.
Escrever é, antes de tudo, teimosia. Necessidade. Loucura. Se alguém escolhe uma arte para ganhar dinheiro, pode ter certeza de que a escrita não será essa escolha. É a forma artística, eu arrisco dizer, mais mal remunerada, a mais ingrata. Um escritor pode passar anos e anos em um projeto literário e receberá cerca de 3 ou 4 reais por exemplar vendido. É só dar uma olhada no número de vendas de um livro (sejamos realistas: exceção vender “muito” no Brasil) para descobrir quão bem remunerado é um escritor e quais as possibilidades de viver do que se escreve nesse país. Isso mesmo, bem parcas. Além disso, existem todas as dificuldades de publicar e ser um escritor independente, que precisa administrar uma série de competências que não envolve, de maneira alguma, escrever. Isso, claro, enquanto ele tenta se manter em um Trabalho, para usar a maiúscula Dovlatoviana. Diante disso, não é difícil entender por que na lista de “grandes escritores” vamos encontrar muitos homens brancos e ricos. Escrever sempre foi para pessoas que podiam sustentar a escrita desinteressada financeiramente, escrever de maneira exclusiva, ter uma boa relação, boa divulgação e, de quebra, serem tidos como gênios da literatura. O espaço do escritor (como todos os outros espaços de privilégio) foi fundado para e por esses homens. Eu falo no passado, mas basta analisar pesquisas que mostram que o perfil de escritores publicados por grandes editoras no Brasil é do homem branco hétero. O mesmo perfil há… quantos anos? Não podemos ser inocentes: o interesse das editoras é um interesse de mercado. Se hoje há um espaço maior (ainda que deficiente) para a diversidade, é em grande parte porque as grandes editoras perceberam que esse é um espaço em alta e que as pessoas se interessam por essas leituras. Não é porque as editoras se tornaram subitamente conscientes, mas porque elas querem receber um bom dinheiro por um mercado que começou com as pequenas e independentes.
Eu não quero chegar a lugar algum com esse texto, senão expor alguns incômodos e percalços das escritoras e escritores que estão fora desse lugar de privilégio e lutam diariamente para serem lidos enquanto tentam sobreviver. Somos muitos. São reflexões, talvez, comuns para escritores, mas não tão comuns assim para leitores. A escrita — estranho ter de afirmar — é um trabalho, um ofício. Essa é uma discussão que precisa acontecer.
É preciso, portanto, exercitar as pequenas rebeldias e tomar para si pequenas atitudes. Ler os escritores que estão fora dos holofotes do mercado. Comprar os seus livros. Apoiá-los. Divulgá-los. Ler a literatura feita por pessoas periféricas, por mulheres, por pessoas negras, indígenas, não-brancas, não-europeias. Ler quem vive-escreve na margem. Ler com a consciência, sim, do que está escolhendo ler. Porque se você não escolhe, alguém escolhe por você. A quem interessa que você leia o que você lê?
Por aí:
Um texto meu, "Pássaro Abatido", foi publicado na Revista Desvario. Clique aqui para ler.
Saiu uma matéria sobre O Diálogo na Revista Livros & Café.
Também saiu uma matéria sobre O Diálogo no Mirada.
Está disponível gratuitamente o livro digital "A Beleza do Partir", uma coletânea de prosa poética publicada a partir do curso ministrado pela escritora Monique Malcher no Sesc Rio Preto. Faço parte da coletânea com o texto "Lagarta sobre a relva (ou os batimentos da terra)".
Convite:

Em dezembro, nossa leitura nabokoviana será de A Verdadeira Vida de Sebastian Knight, primeiro romance publicado em inglês por Vladimir Nabokov. Para saber mais, clique aqui.
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Um beijo 😊
