A voz de Lolita em Lana del Rey
As referências à obra de Vladimir Nabokov nas letras da cantora
Este texto é o primeiro de uma pequena série que pretendo escrever sobre o mundo nabokoviano. Tenho certeza que não há um autor que eu tenha mais fascínio do que Nabokov. A complexidade e, portanto, as possibilidades em sua obra são infinitas.
Mas hoje quero falar um pouco sobre as referências a Vladimir Nabokov nas letras de Lana del Rey.
Vladimir Nabokov é um escritor russo, considerado um dos maiores autores do século XX, mais conhecido pela obra Lolita, que causa polêmicas e controvérsias até hoje. Apesar de seus outros livros serem pouco lidos na América Latina, é um autor bastante estudado no resto do mundo, principalmente em língua inglesa e russa. Já Lana del Rey é uma cantora e poeta norte-americana, conhecida pelas músicas melancólicas e nostálgicas, e cuja fama mundial se iniciou em torno de 2011. LDR se utiliza de referências das décadas de 1940-1960, criando uma atmosfera e uma estética inconfundíveis. Além de conhecidas figuras hollywoodianas como Marylin Monroe, Lana Turner e Priscila Presley, ela bebe de autores como Vladimir Nabokov, Walt Whitman e Sylvia Plath, sem mencionar David Lynch, para se inspirar.
Essas referências conscientes possuem grande importância para a arte da cantora, que inclusive possui uma tatuagem em homenagem a Nabokov, junto de Whitman:
As menções à obra nabokoviana marcam em especial o início de carreira de Lana del Rey, em músicas nunca lançadas oficialmente, e em seus primeiros álbuns oficiais, Born to Die (2012) e Ultraviolence (2014). Em muitas músicas, Lana relata, de forma sombria e melancólica, o relacionamento com homens mais velhos. Talvez você se lembre que uma das músicas de Born to Die se chama justamente Lolita, mas, para mim, uma das músicas com mais referências à obra é Off the Races:
Light of my life, fire of my loins
Be a good baby, do what I want
Light of my life, fire of my loins
Gimme them gold coins, gimme them coins
(...)
Light of his life, fire of his loins
Keep me forever, tell me you own me
Light of your life, fire of your loins
Tell me you want me, gimme them coins
Nesses trechos, ela recita a frase que marca o início de Lolita, considerado um dos inícios mais bonitos da literatura: “Light of my life; fire of my loins” [luz da minha vida, fogo da minha carne], dizendo para o homem (“my old man is a bad man”) entregar a ela moedas douradas, referência também a Lolita, que precisa barganhar dinheiro com Humbert Humbert, homem adulto que a rapta e abusa durante o livro. Lolita junta aquelas moedas – conquistadas por meio de concessão de carícias – para escapar daquele homem e daquela vida.
Mais a frente, Lana diz:
I'm your little scarlet, starlet Singing in the garden Kiss me on my open mouth
Aqui, LDR evoca novamente Lolita no jardim, na icônica cena em que Humbert a vê pela primeira vez, estendida no gramado, lendo revistas sobre Hollywood. Scarlet e starlet são maneiras de Humbert se referir a Lolita, que deseja ser atriz, e estão no poema “wanted”, presente no livro:
Wanted, wanted: Dolores Haze. Hair: brown. Lips: scarlet. Age: five thousand three hundred days. Profession: none, or "starlet"
Lolita, apelido de Dolores Haze, é uma menina comum do subúrbio norte-americano. Seduzida pela vida glamurosa de Hollywood, ela se vê apaixonada por um diretor de cinema, Clare Quilty, que a leva a situações talvez mais degradantes do que as impostas pelo padrasto e raptor Humbert Humbert. Ambos são homens adultos, enquanto Dolly tem, no início do livro, 12 anos. Para escapar de Humbert, ela utiliza a ajuda de Quilty. No entanto, Q. deseja que Dolores participe de filmes pornô gravados em sua mansão. Ela foge de um algoz para outro.
Apesar do sofrimento que Q. a impõe, Dolly o ama. No fim do livro, ela diz a H.H.: “He was the only man she had ever been crazy about”. Dolores quer esquecer o que Humbert fez, fingindo que ele é apenas o seu pai, e diz que preferiria voltar para Quilty do que para ele. Q. é mencionado por ela como um gênio e homem extraordinário. Um dos aspectos mais complexos do livro é justamente que Dolores, apesar de desprezar Humbert, deseja um homem semelhante a ele, o seu duplo. Lolita nunca chega a ter consciência daquilo a que foi imposta. Ela chega a se desculpar com Humbert: “Don't cry, I'm sorry I cheated you so much, but that's how life is”. Um dos elementos mais tristes do livro é justamente constatar que não há final feliz para Dolores Haze. Ela perde a juventude e depois a vida sem tomar consciência de si e sem conseguir viver, enfim, uma vida livre de predadores.
Assim como Lolita, a persona de Off the Races ama um homem mais velho e perigoso, que possui dinheiro, e por quem ela é perdidamente apaixonada. Apesar de tudo, ele conhece o passado sombrio dela e a aceita como ela é. A música, com diversas referências estadunidenses, inclusive a uma espécie de luxo decadente, percorre um caminho de autodestruição e tragédia. Nas músicas de Lana, estabelece-se uma relação muito mais próxima de Dolores com Quilty do que com Humbert. Lolita não abandona Clare Quilty, mas é abandonada por ele. A persona de Lana se deixa levar por um amor vicioso e desesperado, mas do qual ela não deseja fugir. Apesar de tudo, ela o amará para sempre. Tanto que a letra termina assim:
I love you forever, not maybe You are my one true love You are my one true love
Lolita, por sua vez, é uma música que evoca um ar de desejo juvenil. A personagem, diferente daquela no livro, tem aqui voz e desejos próprios. Ela sabe o poder de sedução que tem sobre os garotos, já sabe o que eles querem dela, mas não se importa. Cansada de “brincar” com eles, almeja uma pessoa específica, a quem ela oferece os lábios com sabor de “fruit punch”:
Could be kissin' my fruit punch lips in the bright sunshine 'Cause I like you quite a lot, everything you got, don't you know? It's you that I adore, though I make the boys fall like dominoes
Esse amor proibido ocorre à noite, no escuro de parques (“Kiss me in the D-A-R-K, dark tonight”). Fica evidente a juventude dessa persona quando ela fala dos próprios cabelos bagunçados, do bronzeado, vestido curto e pés descalços, e quando soletra palavras como P-A-R-K, D-A-R-K e L-O-V-E. A música, por meio desses elementos, marca a perda da inocência e o fim da infância. A eu lírico também sabe que a chamarão de Lolita, mas isso não é relevante, porque ela “sabe que isso é amor” e que ele a faz feliz:
I, I, I know that I'm a mess with my long hair And my suntan, short dress, bare feet, I don't care What they say about me, what they say about me Because I know that it's L-O-V-E You make me happy, you-you make me happy And I never listen to anyone (Let them all say) Hey, Lolita, hey! Hey, Lolita, hey!
A paixão de uma jovem por um homem mais velho também é retratada em outras músicas de Lana del Rey, evocando muitas vezes a figura de Lolita. Em Diet Mountain Dew, Lana menciona o famoso óculos em formato de coração, que se popularizou com o lançamento do filme de Kubrick, Lolita (1962): “baby put on heart-shaped sunglasses 'cause we're gonna take a ride”. Já na música Every Man Gets His Wish, nunca lançada oficialmente, também há menção direta aos óculos: “he loves my heart-shaped sunglasses”.
1949, música também nunca oficialmente lançada, retrata toda a atmosfera de viagem pelos EUA de Lolita e Humbert Humbert para fugir da polícia. A música se inicia com a referência de uma das cenas do livro, em que H.H. carrega Dolores Haze no colo pelas escadas.
Carry me up them stairs With my white socks on And my blonde hair long
A música apresenta uma visão idealizada e sonhadora de uma narradora jovem, que mescla infância com aspectos da vida adulta. Ela se dirige ao “papai querido” e pede que ele compre gloss de pêssego, cigarros e pirulitos. O ano de 1949 se refere ao período final em que Dolores Haze viajou com Humbert:
Daddy dearest, you know how I like to take trips Pops, first stops at the K-mart Buy me my peach lip gloss Cigarettes and lollipops For our trip across the USA We're gonna party like it's 1949
A imagem do daddy, talvez resgatada por Lana, não é uma invenção dela. Marylin Monroe e Nina Simone, por exemplo, utilizam-se em suas músicas do termo daddy para se referir à figura romântica de um homem mais velho.
Carmen, por sua vez, é outra música que pode ser diretamente associada a Lolita. A personagem do escritor Mérimée é citada muitas vezes ao longo do romance de Nabokov, sendo um dos apelidos dados por Humbert a Dolores Haze. Carmen é uma jovem cigana que leva um amante ciumento à perdição. Ela é uma Femme fatale que manipula os homens para conseguir o que quer e acaba sendo morta por um deles. A música descreve justamente essa jovem sedutora que é adorada por todos. A figura da femme fatale é bastante explorada por Lana.
Já Put me in a Movie é uma música lançada no álbum Lana Del Ray a.k.a Lizzy Grant, quando Lana ainda utilizava esse nome. A narrativa pode ser analisada como a relação de Dolores - cujo sonho era ser atriz - com Quilty, cineasta conhecido por gostar de “menininhas”:
Lights, camera, action If he likes me, takes me home (...) Come on, you know you like little girls (...) Lights, camera, action You know I can't make it on my own
O mais interessante em Put me in a Movie é o contraponto dessa letra com a feita posteriormente por Lana em High by the Beach. Iniciando da mesma maneira, com “Light, camera, action”, ela inverte a letra original e reconstrói a narrativa sob outra perspectiva. Enquanto na música anterior a narradora precisa daquele homem e diz que “não consegue sozinha”, em High by the Beach ela diz que não pode mais fazer aquilo, que não precisa do dinheiro dele e que conseguirá sozinha.
Lights, camera, acción
I'll do it on my own
Don't need your money, money
To get me what I want
High by the Beach tem a força vingativa de uma narradora amadurecida que ganha consciência de que aquele homem é uma pessoa ruim e um problema em sua vida. A música faz parte do álbum Honeymoon (2015), que traz diversos elementos estéticos e nostálgicos que nos lembra a figura de Lolita.
I know you don't understand You could be a bad motherfucker But that don't make you a man Now you're just another one of my problems
Por fim, há referências mais sutis, como em This Is What Makes Us Girls, música que descreve uma juventude desregrada, a necessidade de colocar o amor em primeiro lugar e o sofrimento advindo disso, quando em certo trecho (“Drinkin' cherry schnapps in the velvet night”) ela cita velvet night, uma expressão utilizada no livro para descrever a primeira noite em que H.H. passa com Lolita: “In the velvet night, at Mirana Motel”, e Cherry, um elemento muito explorado por Lana, assim como ocorre em Lolita. Cereja é uma fruta comumente associada à sensualidade no cinema. No romance, Humbert descreve as unhas de Lolita como pintadas de cherry-red (vermelho-cereja), e na primeira noite no Mirana, Dolly come uma cherry pie (torta de cereja) de sobremesa, fruta que também é colocada no topo dos seus milkshakes. Isso sem mencionar a figura dos moteis de estrada, presença constante no livro e outro elemento utilizado por Lana em suas músicas.
Já em Ultraviolence (2014), há um eco de Lolita quando Lana canta: “I love you the first time/I love you the last time”. No fim do livro, é assim que Humbert descreve o amor por Lolita: “You see, I loved her. It was love at first sight, at last sight,at ever and ever sight”.
Gosto de enfatizar que narrar uma experiência não é romantizá-la, e não coaduno com as críticas que se fazem à Lana por ter narrado experiências traumáticas de forma idealizada em sua juventude. Sobreviventes fazem isso o tempo todo, já que faz parte da necessidade de elaborar a própria vida e torná-la suportável. No entanto, em seus trabalhos posteriores, as referências a Lolita desaparecem ou se tornaram mais e mais sutis, muito possivelmente pela controvérsia que geraram, e pelo próprio desenvolvimento de sua obra. Pelo mesmo motivo, algumas músicas, com ou sem referências a Lolita, deixaram de ser cantadas por Lana del Rey em shows. Mas muitos fãs e a própria cantora ainda utilizam óculos de coração em suas apresentações, elemento que ficou associado à sua estética.
Por aí:
A Revista Alpendre Literário lançou uma edição especial feita somente por mulheres. Com editorial de Thaís Campolina, a revista tem textos de Maíra Valério, Marcela Dantes, Thainá Carvalho. Também estou nessa edição :)
É a primeira vez que publico esse tipo de texto por aqui. Me diz o que achou? me fala se não gostou? sugestões? <3
Impecável, Luizza!!!!❤
muito bom esse texto! realmente é bem nítida essa relação e é sempre importante buscar entender quando um artista está romantizando ou não determinado assunto. gostei de como você escreveu e de todas as referências. e amo laninha <3