Acordei com saudades tuas. E a saudade, essa palavra dupla que só pode ser dita na nossa língua, tem o bafejar matinal da melancolia que eu tento disfarçar com o café.
Me mata não dizer o que sinto.
Se eu fosse escrever sobre um não-lugar, escreveria sobre a Praça XV. Faria uma etnografia da memória, ali. Fotografaria a cada sábado um pedaço de calçada com minha câmera analógica. Moraria em uma de suas pedras e compraria imagens de desconhecidos por alguns poucos reais. Formaria um mosaico de estranhos, mortos, perdidos. Diria a quem perguntasse: são minha família. Assim como quando me perguntam sobre filhos e digo em tom de mistério: não posso ter filhos, sou estéril.
Convites de amor:
I. quer ver minhas cicatrizes?
II. quer ler o que escrevi?
Se eu fosse escrever sobre nós dois, primeiro precisaria inventar uma paixão. Depois um encantamento. Depois a dor.
Me mata não viver o que sinto.
Faltam doze dias para o dia 23 de janeiro, mas não parece nada. Meus 26 anos são apenas sombra, algo que perde importância. Envelhecer. Talvez seja porque estou doente, nessa tentativa do meu corpo de me matar, o que distrai. Meu corpo quer me matar, repito sempre. Esse corpo é uma casca, um casulo que se desfaz. As borboletas guardam na memória os traumas vividos na pupa. Mesmo que sua estrutura se liquefaça e reestruture, elas mantêm a memória da dor. Ninfa, estou num entre-alguma-coisa, algo que não vem a ser. Percebo que não chego a ser propriamente nada. Que antes de me tornar qualquer coisa, perco pedaços, sou cada vez menos alguma coisa. Até não ser mais. Os desejos vão morrendo. Com ele foi assim. Quis o amor que se consome inteiro, mas não se deve querer algo assim. Por isso meus sonhos são pesadelos lúdicos. Para me ensinar que viver cria escaras.
Em janeiro acumulo lutos, cicatrizes que reabrem, pus que observo sem grande interesse.
Titia, qual foi o tema do seu aniversário de doze anos?
Não tive.
Por que não?
Seu avô achava festa de aniversário uma besteira.
Titia, como era…?
Não sei, não tenho memória disso.
Olho para a criança que fui e vejo um mistério.
Quase não enxergo a infância. Existe alguma coisa que se apagou depois que você passou a existir. Você sublimou o passado. Só me lembro das lagartas verdes e felpudas, de uma menina com o joelho aberto, de ter tanto medo. Não sei nada da escola. Nada do que fui. Não há histórias sobre mim. Ninguém recorda minhas primeiras palavras. Apenas: você era muito tranquila. Até hoje, muito tranquila.
Não gostava de falar sobre o que doía. Tinha vergonha de sofrer. Não contava para ninguém, nada, nunca. Um silêncio que acumulou na traqueia. Fiz desenhos. Fiz imagens. Fiz letras. Escrevi até encontrar uma voz que soasse minha, que fosse livre para dizer para-além-de-mim. Ser o que sou não me assusta. Come as you are - and I will. I will.
Em certo ano escrevi um poema de nascimento. Eu, que odeio o calor, nasci no verão alto. Num hospital sem ar-condicionado, el niño. Chuva e suor, nossos poros todos expostos. Se eu pudesse, desaparecia a todo janeiro. Renasceria em março. Minhas asas cor de carne, vermelhas e tímidas.
Hoje recebi minhas fotografias analógicas. Vejo um passado bonito, ali. Gosto de brincar de poesia, pressinto que será sempre assim.
Abaixo, o poema de 2022 (que eu jurava ser de 2020):
DADOS BIOGRÁFICOS Nasci em um ano de el niño em um hospital sem ar-condicionado ou ventilador em um sexta-feira de janeiro na década de 90 em Niterói na hora do almoço Nasci com enormes olhos abertos de fome Fui à Niterói só para nascer (ou melhor, me carregaram até Niterói para ser) Nunca vivi ali e mesmo assim tem um Niterói na minha certidão (para ver que nem sempre dá para confiar no que vem em letrinhas num documento) Fui um bebê chorão e hoje sou uma mulher chorona Nascer numa cidade que não é a sua cria esses desterros de nascença E desde a maternidade (não sei qual) não reconheço lugar algum Nasci para fora do dentro, entende o que quero dizer? São esses meus enormes olhos permanentes estupefatos de fome
Todas as fotografias nessa carta são minhas, feitas com uma câmera 35mm.