Sonhar – viver – sonhar – viver – então, dormir. como Hamlet, dormir.
Dizem que para saber se estamos sonhando, basta tentar ler alguma coisa, já que não seria possível ler em um sonho. Mas isso não é verdade. Sonho o tempo todo que estou lendo.
Nos meus sonhos também há muitos números e costumo acordar me lembrando deles.
[últimos sonhos]
Fui assistir à Lost Highway, mas tudo dava errado na sessão, até que o filme parava de vez. Eu estava com Almas Mortas do Gogol nas mãos, lendo enquanto o filme em si não passava. Era um cinema e era uma praia, e estava cheio. Algumas pessoas conhecidas. Eu dizia que só voltaria dali a um ano, quando daria chance àquele cinema outra vez.
Acordei com vontade de reler Almas Mortas.
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Morava em um quartinho e o vizinho do lado ouvia música às seis da manhã. Postergava se faria alguma coisa, enquanto ouvia a outra vizinha, uma idosa, reclamar. Meu quarto era bem pequeno com uma parede rosabebê. O número na porta era 425. O porteiro interfonava e avisava que um engenheiro de petróleo suspeito estava tentando entrar no prédio. Em certo momento, depois de vários acontecimentos, minha mãe abria a porta do apartamento errado. Pessoas lá dentro. Cores: amarelo, vermelho. Na porta, 428. Mas havia quatro cartas minhas ali, entregues por engano. Eram cartas que pensei ter perdido. Lia os envelopes, ora rosa, ora preto.
Sonhei ainda muitas coisas. Meus sonhos ganham dimensão de vida – uma vida paralela, onírica, por vezes mais real do que a realidade. Não por acaso VN tentou entender os sonhos. Entender se o sonho era o futuro. Qual era a textura do tempo. Depois isso virou dois livros: Ada ou Ardor e Insomniac Dreams: experiments with time [sonhos insones: experimentos com o tempo].
Temos o mesmo fascínio pelo tempo. E um pouco como Ada, preciso do amor. Isso é imperdoável para Van. Van Veen. Vadim Vadimovich. VV, VV. Imperdoável para você.
– Você acha que sou má?
– Não.
Algumas frases, penso: vou colocar um personagem para falar isso. Aí esqueço.
Anote, anote tudo. Ou deixe o esquecimento fazer o seu trabalho. Tenho gostado disso também. É como deixar uma tela ao sol, ou fazer uma argila moldada às cegas. Ver no que se transforma a memória após o esquecimento.
O antropólogo e a artista vão ao museu. Falam a mesma coisa, mas em línguas diferentes.
– Imagina como deve ser a experiência disso, para além da imagem. Deve ser muito diferente.
– Sim... a imagem é uma ficção.
– A imagem é uma representação da realidade.
Ambos, incapazes de alcançar o real.
VN se perguntava: qual a textura do tempo?
VN era insone. VN tinha sinestesia.
Somos neuropatológicos. Ele não, porque nada disso existia. Compartilhamos as mesmas cores para os sentimentos.
VN tinha um gêmeo, SN.
SN foi a sua sombra, o seu eu-do-outro-lado-do-espelho. Do avesso.
SN morreu infeliz. Diziam que era bom poeta.
VN nunca imaginou que alguém pudesse fazer mal a SN, mas SN morreu em um campo de concentração.
VN queria ter amado mais o pequeno SN.
Há muitos anos, me deparei com um livro de uma escritora belga que se chamava “como fazem os outros?”. Não lembro nada sobre o conteúdo, mas nunca esqueci desse título, que condensa tão bem uma pergunta que me fiz a vida inteira: como fazem os outros? Como simplesmente viver? Como parece ser tão fácil, se é tão difícil para mim? Sensação constante de ser inapta para a vida. A única coisa que eu queria fazer era escrever, mas nunca me disseram que escrever era possível. Eu queria viver para um impossível. E mesmo a escrita vem rodeada de convencionalidades que me desnorteiam.
Será que não pensam:
Eu existo. Me obrigam, ainda, a viver. Preciso pagar para estar viva, sobreviver, trabalhar. Quer dizer, eu não pedi nada disso. Não posso só ser deixada em paz?
Deve ser tão bom poder afastar os pequenos e esporádicos pensamentos desagradáveis como quem espanta moscas em um dia quente.
A cada inconveniente, penso em morrer. É um pensamento intrusivo, como dizem. Intermitente, feito uma febre. Mas fico feliz, porque é só um pensamento, resquício do que me acompanhou durante tantos anos – um efeito colateral. Nunca saímos ilesos aos danos.
Tempo. No fim, é tudo sobre o tempo.
O que é o tempo?
O tempo é a textura do lembrar e esquecer. O tempo é translúcido e áspero. O tempo é viver. Não. Sim. O tempo é viver e viver é um processo de morte. Morrer de células. Descobri que quanto mais células tem um corpo, menos esse corpo vive.
Viver é perda. Perder o mais ordinário do epitélio, os fios de cabelo que se desfazem de mim todos os dias. Unhas que crescem e corto e crescem.
Somos matéria que se desfaz.
– Para você, qual a cor do tempo?
– O tempo é branco como a morte branca.
Tenho me interessado mais pelo que sonho do que pelo que vivo e é preciso tomar cuidado. Meus sonhos têm dimensão de vida. Vida sonhada e vida vivida. Nenhuma delas real.
Às vezes desconfio que sou nada mais do que matéria-prima para aquilo que escrevo. Vivo para que possa criar narrativas, luzes e sombras, o que será utilizado ou descartado. Penso muitas vezes como se escrevesse, ditando um texto na mente. Escrevo enquanto ando, enquanto durmo, enquanto choro, enquanto amo.
Você acha que o sonho está no tempo?
por aí:
Falei sobre o Diálogo numa conversa no Literatura & Fechadura, leia aqui: