Escritores são loucos?
tempo, obsessão e loucura na arte, ou, ainda, uma homenagem a Vladimir Nabokov
O medo da loucura constitui a loucura. O medo que se espreita atrás de uma porta, por trás de uma fresta, no papel de parede, na mancha que se espalha à noite no quarto da infância. Os loucos têm medo da loucura, porque pressentem o seu bafejar atrás do ouvido. Uma hora, irremediável, ela se aproxima. É um ponto sem retorno.
Sinto uma necessidade física. Uma febre que vai tomando conta primeiro dos meus dedos, depois de todas as articulações. O cérebro e os olhos são incapazes de focar em outra coisa senão escrever. Colocar o meu mundo em palavras. A palavra escrita.
Há uma certa loucura em tudo isso. Rosa Montero, no seu excelente “O perigo de estar lúcida”, fala sobre a relação entre a criatividade e a loucura. Ambas são primas, ela conclui. Não por acaso tantos artistas têm um ou dois pés no que chamamos de transtornos mentais, mas os escritores, em particular, são muito bem-sucedidos nisso. Em termos de loucura, estamos em primeiro lugar. Suicidas, alcoólatras, depressivos, neurodivergentes, transtornados.
Montero tenta desvendar esse fenômeno recorrendo a centenas de estudos. Parece que há algo em nossa infância que se rompe, um trauma e uma perda que carregamos pelo resto da vida. Nada disso me surpreende. Para mim, o segredo de tudo está na infância. É nosso alicerce ou nossa ruína. Vladimir Nabokov tem uma frase que resume isso bem, algo como “deveria haver uma lei natural, antinatural, para tais inumanos começos”.
Nabokov era particularmente acurado ao tratar das formas mais peculiares de perceber o mundo. Era um mestre em descortinar as estranhezas da realidade crua e de esmiuçar o êxtase que é estar diante da beleza pura e total da existência. Apesar de bastante discreto sobre a própria saúde mental, Vladimir descreve as alucinações da infância, o medo de dormir. A insônia fez parte de toda a sua vida. Um pouco antes de escrever Ada ou Ardor, VN teve uma teoria bastante estranha: acreditava que os sonhos podiam predizer o futuro. Essa investigação onírica – ou, antes, sobre o tempo – foi deixada de lado em certo momento e deu origem a uma parte do livro, uma espécie de ensaio sobre a textura do tempo.
Ada ou Ardor é uma obra pouco palatável, aparentemente. Diz-se que poucas pessoas realmente terminam as mais de quinhentas páginas dessa ficção cientifica que envolve o amor incestuoso de dois irmãos, Ada e Van Veen. Eu consigo entender a dificuldade: é um livro que se constrói nas minúcias. A obra de Nabokov precisa ser apreciada nos detalhes, com uma lente macro para observar insetos. É o prazer estético do texto e as ideias que compõem uma obra, no todo. É uma viagem multicor e resplandecente.
Mas, o ponto em que quero chegar é: Nabokov era um grande mestre da loucura e isto porque era um grande mestre da obsessão, o seu tema.
Um escritor precisa ter sua dose de obsessão. Nada pode fazer um sujeito passar a vida a redigir textos ficcionais senão o próprio fazer obsessivo de compor. Um escritor quer escrever. Ver a obra escrita é dar finalidade a essa minuciosa artimanha artesanal. Li uma notícia sobre uma mulher que passou vinte anos restaurando o afresco de Da Vinci. Vinte anos recompondo minuciosamente aquela última ceia de um ateu canhoto que escolheu a técnica errada para a obra-prima. Ser um escritor não seria isso? Passar anos e anos redigindo um mesmo longo texto, que vai corresponder, com sorte, a umas dezenas de livros durante a vida toda.
É evidente que a ficção nos exige um certo grau de obsessão, o que exige certo grau de loucura. Passamos meses, anos, a criar algo que existe apenas em nossa imaginação e que vamos dando forma por meio de letras miúdas no papel ou no computador. Passamos a vida a criar uma vida que não existe, uma fantasia que muitas vezes se torna tão ou mais intensa do que o próprio cotidiano que vivenciamos.
O que sinto é que há duas narrativas dentro de mim: a da realidade, que percebo com muito fascínio, e o da ficção, um fio narrativo que vai se formando em minha mente inquieta. Uma se entrelaça à outra enquanto absorvo matéria-prima para escrever. A vida é a matéria-prima do escritor. E uma escritora como eu, que se interessa em particular pelo cotidiano, nunca se entedia.
Esse é um fenômeno estranho: o tédio. Eu o conheço muito pouco. É como se minha mente nunca parasse, sedenta. Meu corpo-casca, por outro lado, pode parar muitas vezes. Quando estou de férias é que noto como meu corpo-real funciona, esmagado pela rotina do Trabalho (como diria Dovlatov). Fico parada por bastante tempo, apenas pensando. Muitas vezes estou escrevendo na minha cabeça, refletindo sobre alguma ideia.
Quando criança, costumava me deitar na cama, no escuro, e em algum momento me questionavam se estava dormindo. Não estou dormindo!, respondia, estou pensando de olhos fechados! Alguém que reflete e sente o tempo todo não pode sair ileso. O meu mundo interior é tão vasto que isso muitas vezes me afastou do convívio com outras pessoas. Esse comportamento apenas melhorou quando me convenci de que eram nos indivíduos e na realidade que encontraria motivos para escrever e narrativas para serem escritas. Escrever é um grande motivo para viver.
Outro dia, G. comentou comigo como poucos livros são escritos ao longo da vida. Nabokov, por exemplo, escreveu cerca de vinte livros em 77 anos (até que um bom número). Um livro pode demorar anos para ficar pronto. Lolita demorou cinco, mas a ideia inicial já existia há trinta. Goethe escreveu e reescreveu Fausto ao longo de sessenta anos. Claro, temos livros que foram escritos em arroubos repentinos, febres de dias. Mas uma obra não se escreve apenas quando está sendo escrita, e um escritor escreve mesmo quando não está, efetivamente, colocando letras no papel.
A complexidade da composição faz parte do prazer artístico. Diferencio claramente os escritores (que querem escrever) daquelas pessoas que querem ter um livro escrito. São coisas inteiramente distintas. Para um artista não faz sentido utilizar uma inteligência artificial para realizar o artesanal criativo, porque o prazer está no processo. Repito: o prazer de escrever está em escrever, e o livro pronto é o resultado desse trabalho. Um momento de epifania em que vemos o livro terminado e morto. Uma felicidade e um luto.
Ter a obra pronta é como terminar de restaurar o afresco de Da Vinci, mas a restauração só vale a pena porque foi feita com todo esmero, numa dedicação apaixonada. O resultado é o melhor que se pode obter naquele momento, e torcemos para que haja outros momentos para restauros ainda melhores. Por isso alguns escritores vão se aprimorando na arte de complexificar o próprio mundo interior.
No meu caso, há um desejo incontrolável de contar aquela história, daquela maneira. A narrativa fica se desdobrando na minha mente e passo a ouvir meus personagens, persegui-los e tentar compreendê-los. A descoberta, a criação, é uma aventura. É como lidamos com o medo, com a vida, com a morte, com a dor, com a loucura. Na escrita há uma liberdade absoluta, inconsequente e infantil, arrebatadora e total. Para mim, só pode ser assim.
Escrever é necessidade tão premente, enlouquecida, que nos carrega até a morte. Com VN também foi assim. Ele escreveu até morrer, internado no hospital após uma queda e depois com uma infecção pulmonar. Ele queria terminar o seu original de Laura, mas não conseguiu. O livro, inacabado, se regurgita diante de uma piada: morrer é divertido. Proust foi outro que escreveu até dar o último suspiro, dando continuidade ao seu monumento literário, também pouquíssimo lido: em busca do tempo perdido.
Não sabemos o motivo, mas há esse medo do trabalho inacabado, de morrer sem ter terminado aquilo que escrevemos. Talvez porque há a fome e o desejo de ver aquilo no mundo. Nosso mundo. Arte é comunicação. E a obra é o melhor que temos a oferecer.
“Acomodando-se com uma única linha”
Vladimir Nabokov
Olá,
Essa é a citação que explica o nome ÚnicaLinha, uma frase de O Original de Laura, livro nunca terminado de Vladimir Nabokov. Existe algo nesse livro que mexe muito comigo. Talvez ele me lembre de que a vida, no fim, não passa de um rascunho inacabado, um gesto interrompido. Às vezes, a gente só tem uma única linha para se acomodar.
Dia 22 de abril foi aniversário de Nabokov, o meu escritor da vida, por isso a cartinha veio recheada de referências à sua obra.
Um beijo <3
Ótimo texto, Luizza! Enquanto eu lia, pensava se a proximidade de escritores com a loucura não tem mais a ver com uma questão econômica, já que costumam ser uns fodidos, que artística. Por exemplo, você se lembra de algum autor rico que tenha se matado?
Não quero fazer propaganda minha aqui, mas, feliz coincidência, o seu texto dialoga com a minha mais recente postagem da minha página. Se quiser trocar figurinhas....
A relação que você tem com o Nabokov é a relação que eu tenho com Flaubert, um dos meus heróis literários. Me inspiro nele para lembrar que a escrita é um trabalho árduo e de muita frustração, que pode durar anos. Quando lemos suas cartas, constatamos como foi penoso para chegar aonde ele chegou. Em cartas datadas entre 1851 e 1856, ele comenta a dificuldade de dias e até de semanas para escrever uma única página, mais ainda o processo de conectar cada uma dessas páginas para moldar uma narrativa orgânica e coeza, e não simplesmente compor uma série de quadros verbalizados que não dialogam. A obra de sua vida, o poema dramático "As Tentações de Santo Antão" (1874), levou 25 anos para ser escrito, e se trata de um volume que não chega a 250 páginas. Foi complicado, o que justifica Flaubert ter escrito pouquíssimo, mas rendeu uma bibliografia invejável: "Madame Bovary", "Salammbô" (o meu favorito), "A Educação Sentimental", "Trêa Contos", "Bouvard e Pécuchet". Além disso, diz-se que Flaubert, antes de morrer, estava planejando redigir outro romance histórico que trataria da Batalha das Termópilas, o que teria sido incrível levando em consideração o que ele conseguiu estéticamente com "Salammbô", mas vai ficar só naquela ideia borgeana dos livros nunca escritos, talvez o equivalente literário do "Napoleão" de Kubrick.