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Essa noite sonhei com você
Salome: Suffer me to touch thy body. Suffer me to touch thy hair. Suffer me to kiss thy mouth. I will kiss thy mouth, Jokanaan. (...)
Salome: Ah! I have kissed thy mouth, Jokanaan.I have kissed thy mouth.There was a bitter taste on my lips.Was it the taste of blood?
O. W.
Essa noite sonhei com você. Suas tatuagens eram diferentes. Você queria vir até o meu apartamento. Havia um banquete, mas eu não conseguia comer nada. Tentava pegar um Uber com M. Estávamos numa escola, não aquela, mas outra – onírica. Comida, maquetes escolares, uma tentativa frágil de ir embora. Havia outros homens, mas é tão confuso. Meus sonhos-pesadelo são uma profusão de imagens, cores, movimentos.
O psiquiatra disse que o remédio causa sonhos mais vívidos, mas não me faz ter pesadelos. Ele explicou: eu poderia ter bons sonhos, só mais vívidos. Sei disso. Tenho pesadelos antes de qualquer remédio.
Falei um monte, para esse médico. Foi fácil. Tenho pouco receio, agora que tudo anda meio distante. São cinco anos desde a última vez que tentei morrer, acho. Não tenho certeza, é tudo um pouco difuso, no passado. São doze anos desde essa dor. Eu já desisti de esquecer. Porque meus pesadelos seguem aqui.
Ele não me perguntou os motivos. Eles nunca perguntam. Seria explicar minha vida inteira. Essa morte.
Isso também transformou quem eu sou.
Há onze anos, tinha acabado de voltar de viagem quando nos esbarramos em um supermercado. Era um sábado, como hoje. Estava com uma camiseta que me envergonhava. Não falei com você. Nos veríamos pouco tempo depois. Que dia? Talvez na semana seguinte. Conhecia todos os detalhes do seu corpo visível, dos seus gestos, o seu cheiro. Você se aproximava, o toque furtivo, você se afastava.
Vou dizer algo terrível, sincero:
Era um tempo feliz
Era um tempo infernal
Era minha adolescência – rompida
A única que tive
Não conheci outra.
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Há muito não escrevo. Muito aconteceu e ao mesmo tempo é como se nada acontecesse. Você foi embora, mas continua aqui. Sigo tendo pesadelos. Acordo e não sei diferenciar memória e sonho. Há um desejo inquieto que pinica meu corpo. Meu desejo é algo que me assusta, um desejo que não conheço totalmente, que não sei medir ou nomear. Aqui é plano cor de cobre. Ainda vi muito pouco, mas não há muito que queira ver. Há um vazio que engole uma tristeza em mim, um coraçãozinho fragmentado.
Perdas são muito difíceis. Acho incrível quando alguém diz ser desapegado. A vida toda me agarrei ao amor com muita força. Foi difícil perder o amor dos meus pais, aquele amor que só temos na infância e começa a se esfacelar quando passamos a ser algo além disso. Minha mãe diz que caí doente quando ela deixou de me amamentar – que a tristeza me fez ter febre. Não queria me desgarrar dos meus pais. Queria eles inteiros para mim. Mas eles eram já inteiros outra coisa, além-de-mim, muito antes de mim. À noite, o medo era tão grande e eu me arrastava para a cama deles, ou me deitava no chão – trágica e endurecida –, ou me encolhia no espaço entre a cabeceira e o travesseiro, o corpo minúsculo. Não dizia nada. Não me ensinaram a dizer. A palavra entalhei sozinha, na carne.
Depois escolhi homens para amar. Alguns amei como se ama uma borboleta fugidia. Passei a observar punhos e antebraços, alguma coisa na têmpora e a maneira de dizer e olhar. E ao mesmo tempo um desejo narcísico de ser desejada, de sentir que era possível morrer pela posse do meu corpo. Gosto como a sua mão é do tamanho do meu rosto. Gosto da sua mão no meu pescoço. E a tortura da luxúria, os minutos infindáveis até o fundir das carnes. Meu corpo inteiro encapsulado, embalado, quente, agridoce. A vontade de me entregar inteira, submissa, abandonada de mim. Inteira de mim.
A primeira vez que você pediu que eu vestisse e depois despisse. Não sei insinuar ou dizer nada, me movo no silêncio. Meus olhos são dois faróis de sede no escuro. Fechados, na luz da manhã. Ainda está cedo, as pernas pesadas, o corpo um todo formigamento. Te digo que meu corpo está viciado. Basta mostrá-lo a você. Não é preciso mais nada além de mostrá-lo a você.
Ela me conta sobre uma freira. É algo que me espanta. Queria conversar longo com alguém sem desejo. Deve ser uma paz, uma calma. Se eu tivesse nascido em outros tempos, em que o casamento era inevitável, o que faria? Casaria? Seria impregnada muitas vezes? Teria meios de evitá-lo?
Há um desejo convulsionado, que se espalha pelas bordas, transborda. Tenho medo, o desejo não finda. É abstrato e narcísico. O desejo é um tormento. Me lembro de Salomé na versão de Oscar Wilde, do que o desejo pela boca de Iokanaan faz. O desejo nasceu cedo em mim, incontornável, tormentoso. Pedia que você me acordasse na madrugada fria, que por baixo dos lençóis preenchesse meu corpo.
Você era pouco e de repente muito e de repente nada.
É como um poema da Hilda sobre lava e nada.
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Me desenho com braços enormes e um rosto sem olhos. Seios estrábicos, como aquela menina naquele livro, flaura. No meio, um vaso seco. Só tenho a mão esquerda, que também é uma flor. A mulher-planta é uma ninfa. Um corpo incompleto não formado. Algo entre o ovo e a crisálida.
olá,
Dessa vez deixo esse texto para você, que fala, sobretudo, sobre Desejo. Procurei ajuda em Bataille, mas acabei encontrando Salomé, obra do Oscar Wilde que li há mais de dez anos, mas que não esqueço, pela força do desejo de Salomé pela boca de Iokanaan. É essa Salomé de Wilde que evoco na segunda imagem. Já a imagem que inicia esse texto é outra figura que adoro: a da ninfa.
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Espero que esteja tudo bem. Me diz o que achou? é só responder esse e-mail.
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Te convido, ainda, a ler Canibalismo (só para crianças): clique aqui.