Hoje conto um conto
A RUA VAZIA
Eu queria te dizer, querido, como às vezes a respiração é difícil. Estou sentada no ônibus e não consigo engolir. A saliva se acumula em minha boca, os olhos se enchem d’água. Tento dizer ao meu corpo, lembrá-lo de como se engole. Concentro-me, tentando não me desesperar. Mas o desespero vem. Olho para os outros passageiros e ninguém percebe. Ninguém me diz como se engole a saliva que se acumula em minha boca. Não me mexo, tentando estancar a ferida do meu nervosismo. E se eu nunca mais engolir? Com esforço, sinto a garganta receber aquele líquido viscoso, deixá-lo atravessar a faringe, o esôfago, inundar os pulmões.
Eu me deito e sinto que não vou conseguir dormir. Não respiro. Choro e não sei me dizer que consigo respirar que vou respirar quando estiver dormindo que não vou morrer que vou acordar que não é nada é coisa da minha cabeça e a respiração pesada, a respiração difícil. É coisa da sua cabeça você consegue respirar você pode dormir e não consigo.
Adormeço quando o cansaço me vence. Sonho que ele está em cima de mim. Sonho que estou nele, que ele está em mim e no sonho às vezes quero às vezes não quero.
Há muito medo em mim. Ele diz que é porque não tenho deus. Não, pelo contrário. É bom pensar que a morte é apenas um fim. Olho os rótulos dos medicamentos. Gostaria de tomá-lo. Mas não, não agora. Já tomei muitos comprimidos e eles não fazem efeito em meu corpo seco da quase-morte.
Eu sou o cansaço que me vence.
Permaneço sentada, tomo um gole de café. Olho a mesa branca, os livros, o computador, as paredes nuas, os móveis, a janela, as cortinas. Observo o silêncio e minhas mãos. Bem quietinha, tento me fazer desaparecer de mim. Mas, ao tentar, tomo toda a dimensão do que sou. Meus braços parecem enormes, meu tronco atravessa o ambiente, meus pés estão muito distantes. Olho para as falanges compridas de minhas mãos, as veias verdes. Cada dente toma proporção única e individual, a língua é áspera e não consigo deixar de feri-la enquanto percorre minha boca. Tomo conhecimento de minha respiração quente, dos meus batimentos cardíacos, do sangue que percorre meu corpo, de cada articulação de cada sinapse de cada osso de cada órgão de cada célula cada cromossomo cada membrana cada cada
Eu sou fraca.
Sentada para ler um livro, o sentido das palavras não chega até a mim. Letras se misturam, suspensas no ambiente, caem debaixo da poltrona, escondem-se. Elas não conseguem seguir uma ordem lógica e me alcançar. As páginas estão brancas. Balanço o livro, mas nenhum vernáculo se esparrama. Todos se foram. O livro está vazio.
Posso sentir que falam comigo, que me chamam. Estou sozinha e posso ver uma porta se abrir, alguém se mexer. Viro o rosto. Não há nada ali. Tenho medo. Corro pela casa, observo as migalhas em meu prato. Fico um dia sem me mexer. Outro dia, correndo. Fecho todas as cortinas. Abro todas as portas. Apago todas as luzes. Ligo todas as torneiras. Subo na cadeira. Subo na mesa. Escondo-me debaixo da escrivaninha, nua.
Fico nua.
Sinto o da rua frio percorrer meu corpo. Sinto arrepio meu corpo sentir a rua. Sinto o poste a luz clarear que passa o homem de terno e maleta que volta para casa tarde trabalho do. Sinto apodrecer rins meus que afundam desmancham e inundam corpo meu que fede odor de rim que apodrece. Maleta homem olham para mim e olho para o homem estou nua e ele que estou vê e ele olha curioso mas não para; ele vai e eu fico aqui fico olhando maleta homem de terno que chega tarde trabalho do.
No outro dia olho nua a rua para ver se a rua me olha, mas o homem não aparece.
No outro dia também.
No outro também.
O homem então passa de novo maleta terno. Olho nua para o homem sempre nua e estou arrepio seguro um copo de vinho. O homem olha e de novo ele olha e sei que lembra ele da nudez minha que espreita com vinho sem vinho nesses dias da ausência do homem maleta terno que chega tarde trabalho do.
(Meu querido, eu queria dizer que eles não veem o semblante um do outro).
Sou apenas nudez e ele é apenas terno uma maleta e curiosidade que vejo não pela face da pouca luminosidade mas pela vagarosidade com que o homem caminha seu olhar para o alto aquela mulher nua. Eu nudez. Olha mais. O homem para. Seguro firme o copo que na outra noite não existia. Tenho vergonha das unhas destruídas que seguram o copo mesmo que a maleta homem não possa ver. O homem não vê meu rosto. Ele para. Olho para o poste que ilumina o homem o homem olha para nudez minha. Nesse momento gostaria que ele subisse que ele viesse até a mim. Mas ele permanece parado e ela-eu parada. E os minutos são poucos e todos. O homem move-se. Ela-eu imóvel.
A taça cai em câmera lenta. O vinho não se espalha com o vidro, mas permanece inalterado no formato da taça que o sustentava. Por um instante.
Olho.
Olho de novo.
A taça não cai. Continua firme em minha mão. Ergo o rosto, assustada.
A rua está vazia.
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Agora…
Sou apaixonada pelo subversivo, por fotografia e pelo sombrio ou bizarro. O Pinterest é, para mim, uma grande fonte de referências imagéticas, onde consigo encontrar e guardar uma série de obras de arte e descubro autores incríveis. Ultimamente ando interessada em colagens e fotografias. Gosto daquilo que é anônimo, íntimo e incompleto. Talvez minha própria arte tenha sido sempre assim. É muito forte quando Bataille diz que escreve para apagar o próprio nome. Uma necessidade de expressar e, em contraponto, desaparecer.
Abaixo, um pequeno compilado encontrado por aí:
Um desabafo…
A verdade é que tenho mais ideias do que tempo para elaborá-las, o que anda me deixando bastante cansada e frustrada com a vida prática, que nunca me agradou muito. Sobreviver é muito cansativo e eu só queria fazer arte.
Me diz o que achou dessa cartinha? me escreve, vai :)
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Seus textos sempre me sensibilizam muito, sou sua fã!
Você é brilhante!