Meu experimento com o tempo #únicalinha14
MNEMOSINE
Os cavalos de madrugada pela Av. Nevsky no frio de março. O gelo do inverno cedendo gesto ao gelo da primavera. Restaurantes abertos a noite inteira. Pessoas dançando ao som das bandas de rua. Muita vodca e um Yakisoba às três da manhã. Fumamos sob um monumento de bronze, marcas de estilhaços da guerra e uma placa para que não se esqueça. Fumamos para não sentir o gelo sob os dedos. Bebemos à moda russa, discretamente em garrafas pet. A madrugada em Piter tem tons irreais. Uma cidade mergulhada no sonho ou perdida no tempo. Akhmatova ali perto, em sua casa-pesadelo. Quintal onde chorei uma despedida.
O café tem kasha e Cheburashka, aquele desenho que amamos. Todos dizem bom apetite. dobraya appetita. O papel de parede verde, amarelo, verde.
No trem noturno, o homem recusa a própria coberta e travesseiro, e dorme sem desfazer a cama. Outro come um pote de vinagrete e oferece ao desconhecido da frente. O homem recostado em um banco, sem gorro ou cachecol, cabeça para trás, num parque mergulhado em um mar de neve branca. Tudo em Moscou é enorme. Perto do antigo endereço de Maiakovski, um protesto silencioso. Uma pessoa de cada vez sustenta um cartaz e as outras aguardam. A noite moscovita brilha sob o Kremlin e sua estrela vermelha. Toca moscow nights moscow nights.
Atravessamos a ponte, caminhamos pelo interior. O guarda no trem empunha um bastão, ameaçador, mas os ébrios só dormem, feito crianças. O ônibus chacoalha levantando poeira na estrada de terra e é o primeiro lugar que soo estrangeira. Na capital, em silêncio, disfarço bem. Ali, vilarejos se bifurcam em uma única linha. Um mercado. Uma igrejinha ortodoxa. E você. Você diz que a Rússia se sente com os pés. E eu vou até onde se deve ir. Um ingresso amarelado, de papel, ano 2007. O aquecedor manual e o termômetro de praxe. 10 graus do lado de dentro. Temos dois aquecedores, em nosso pequeno quarto, mas a temperatura não chega a 20 graus. Uso batom vermelho e sombra rosa e uma idosa me elogia na fila do banheiro. Sob a neve, as pessoas fazem fila para comprar rosas. Gatos se aconchegam dentro dos museus. Uma senhora me pergunta, muito séria, se conheço Blok.
Passado, presente, sonho.
Tenho uma confissão, não chego a dizer. Você sabe. O passado não existe, mas esse é meu experimento com o tempo.
Rio de janeiro, 30 de novembro de 2022
Quero ainda compartilhar com você “Tudo ainda intolerável”, um texto que publiquei no meu blog.
Esse texto foi escrito em 2016. Pensei muito antes de publicá-lo. Fazia parte de um livro que nunca chegou a ser e que leva o mesmo título. Depois, em algum momento de 2018, essa história foi reformulada e virou O Diálogo, meu livro de estreia. Existe uma mesma menina, um mesmo homem que aqui permanece sem nome. Um mesmo universo, que se repetiu e se repete ainda, muitas vezes, na história do mundo.
Por aí:
Está passando nos cinemas “A esposa de Tchaikovsky”, filme russo exibido no Festival de Cannes. Quero muito assistir! Fica a dica para quem tem interesse.
Para os cariocas: o Museu da República está exibindo a exposição Marielle Marés, que homenageia a vereadora Marielle Franco. Saiba mais aqui.
Para as escritoras: Ministério da Cultura lançou o edital do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023, uma iniciativa inédita.