Minha criança é um borrão.
Mas sei que minha criança fantasiava por horas, e nunca soube bem o que é ficar entediada – porque os pensamentos a distraíam tanto, porque há uma completude na imaginação, onde tudo, tudo pode acontecer. Minha criança sofria porque viver não é imaginar. Diziam ela é excêntrica e aceitou esse título para ser livre (acreditava nisso, precisava acreditar). Minha criança amava o livro-universo, o livro-objeto, porque isso a salvou tantas vezes e de tantas formas. Essa criança cujo único desejo é ainda o mesmo.
Minha criança torcia para que as outras crianças não aparecessem, para que ela pudesse se sentar com os adultos, papel e lápis na mão, e ouvir as conversas à mesa da cozinha. Fingia não prestar atenção, mas prestava atenção em tudo. Minha criança achava ser Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Simenon, habilidade ímpar de compreender as pessoas, de perceber suas contradições. Mas era tudo parte de um esforço gigante de entender como os outros funcionam, como podem viver, se eram – as pessoas e ela – da mesma espécie, afinal. Eu diria não são, criança, não são.
Minha criança é a memória, esfarelada grudenta. Minha criança nunca entendeu por que era diferente ou por que sofria tanto para estar no mundo. Minha criança dizia que viver é dor, uma solidão indizível de uma falta brutal. Eu queria te dizer que poderia ter sido diferente. De repente se alguém tivesse olhado para você. Minha criança é um retorno impossível.
Minha criança tinha muito medo. Medo do silêncio, do ralo do banheiro, de estar sozinha, do escuro. Ela cantava durante o banho para afastar o pânico, os olhos bem abertos debaixo d’água, os olhos ardendo, porque fechá-los era fatal, porque a Xuxa dizia quem canta os males espanta. Ela acreditava em tudo que diziam. Minha criança é ainda ingênua, mas na época nem mesmo tinha dimensão dessa ingenuidade. Minha criança aprendeu a chorar sem que ninguém notasse – uma habilidade para a vida toda.
Ela sabia que vivia em um mundo estrangeiro, camada fina, translúcida, que a isolava do resto. Não conseguia estabelecer contato, o que parecia tão primordial. Era sempre o número ímpar, e acreditava ter amigas até que elas fossem embora mais uma vez. B. diz que arte é comunicação e talvez tenha sido isso, tenha sido assim. Algo para escancarar o abismo de dizer: existo. A banalidade e o assombro dessa fatalidade. Um passo, três. Aprender a dançar uma coreografia cega.
Queria que essa minha criança soubesse que poderia ousar o sonho máximo – ser feliz –, porque ela acreditava que isso estava na ordem do impossível. E que há meios de conforto no desconforto de estar na borda de um planeta alienígena. Que há uma vida que vamos regando juntas, mãos e pés na terra.
Essa foi a edição de outubro, em homenagem ao dia das crianças.
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