Não acredito no destino
A palavra dá significado ao extraordinário que existe no caos. Ou sobre datas, Alices e Lolitas.
Quando tive o ímpeto de reler Alice na última semana, fui dar uma olhada no calendário.
Freud dizia que certos números e datas ficam gravados no inconsciente. Isso explicaria por que, em certos dias, por exemplo, ficamos tristes aparentemente sem motivo. Essa tristeza súbita pode ocultar um dia marcado na memória do inconsciente.
Peguei os dois livrinhos e coloquei na mesa de cabeceira. Minhas duas edições não foram compradas, mas apareceram para mim. Encontrei Alice Através do Espelho na noite anterior à minha visita ao túmulo de Vladimir Nabokov, entre livros escritos em russo, num desses “pegue e leve” de rua. Era um sinal nabokoviano, já que há uma viva relação entre a obra de Carroll e Lolita. Nabokov estudou na mesma universidade de Carroll e traduziu Alice para o russo. Ambos tinham um gosto por códigos, jogos e referências refinadas.
Estamos na semana do dia 04 de julho. Foi em um 04 de julho do século XIX que o estranho reverendo Charles Dodgson, mais conhecido como Lewis Carroll, levou a pequena Alice Liddell e suas irmãs para dar um passeio e inventou Alice no País das Maravilhas para entretê-las. Já em um 04 de julho do século XX, em um mundo menos ficcional que o nosso, Dolores Haze escapou de Humbert Humbert. No mesmo dia, no século XXI, eu corri até a uma livraria de rua – a falecida Galileu Galilei – e pedi timidamente ao livreiro um exemplar de Lolita. De alguma maneira, eu sabia da importância daquilo que tinha em mãos pela primeira vez. Fui para casa correndo e a sacola se rompeu no meio do caminho. Capturei meu livro do chão e continuei a correr. Era quarta-feira, dia 04 de julho, quando li Lolita pela primeira vez, e eu tinha catorze anos.
Tenho uma estranha memória para datas e guardo certos encontros literários como quem relembra histórias de amor, mas essa está sacramentada no livro, em um canto a lápis. No ano seguinte, já teria lido todos os livros do Nabokov que consegui encontrar. Aquela descoberta mudaria minha vida, como mudou a de Alice e de Lolita, e de suas gêmeas reais e ficcionais.
Eu não acredito no destino. Mas acredito no acaso e na palavra. A palavra apenas dá significado ao extraordinário que existe no caos.
Como uma boa pessoa tendente a obsessões, preciso de temas complexos para me debruçar. E Nabokov não tem falhado nesses últimos 13 anos. É um autor inesgotável para minha necessidade de minúcias. Um autor que está sempre para mim, em diferentes aspectos.
Certa vez tive um sonho que guardo como meu lugar seguro:
Havia uma árvore no topo de um monte. Eu subia até esse monte e as folhas da árvore se desprendiam, mas, ao invés de caírem, elas voavam e eu percebia que eram borboletas.
Nabokov é meu autor através do espelho. É como se olhássemos para o mesmo ponto, cada um de um lado, simetricamente ideais e opostos. Mesmo contrários, podemos enxergar as mesmas cores nos sentimentos e nas palavras. É uma compreensão mútua e retardatária que leitor e autor compartilham, fora do Tempo. O leitor é infinitamente mais feliz do que o escritor, porque ele pode compartilhar de um amor que, sozinho, o autor não pode.
E conhecer você, VN, sem realmente conhecer você, me faz inacreditavelmente feliz.
Das muitas coisas que guardo comigo é a relação que Nabokov estabelece não apenas entre leitor-escritor, mas entre o jovem escritor e os escritores do passado, e do jovem escritor com o seu próprio escritor do futuro. Vou explicar. Ele menciona os autores anteriores como seus antepassados, colocando-se descendente dos que vieram antes. Acho isso muito bonito. E acho bonita também a forma como ele trata a relação entre o jovem escritor e o escritor do futuro, o escritor maduro que ele será no futuro. É preciso confiar no escritor que seremos.
“Ele foi tomado pelo desejo temeroso de não permitir que o pacote se fechasse e se perdesse num canto do depósito de sua alma, um desejo de aplicar tudo aquilo a si mesmo, à sua eternidade, à sua verdade, de forma a fazê-los brotar de um novo jeito. Existe um jeito – o único jeito”. VN.
escrever.
Parabéns Luizza, maravilhoso como sempre. Seus textos sempre me deixam reflexiva, despertam memórias. Abraços.