ÚnicaLinha #09 - dados biográficos e sonhos pequeninos: viver é muito perigoso
"Que: coragem - é o que o coração bate; se não, bate falso. Travessia - do sertão - a toda travessia."
J. G. Rosa
Fevereiro, esse mês par e inocente, esmagado entre janeiro e março, dois meses gigantes, me anuncia que o ano finalmente começou. Fevereiro já foi muitas vezes aquele último mês de férias e aquele mês meio atropelado de carnaval — o que significa, para quem não gosta da folia e não tem dinheiro para viajar, um tempo atravancado no Rio de Janeiro. Um calor dos infernos, sem poder aproveitar muito a cidade para, logo depois, as aulas voltarem. Ai, ai. Que saudades de ter os períodos marcados pelas férias escolares.
Janeiro é um mês difícil para mim. Não é apenas o início efetivo do ano, mas o início do meu ano, do meu aniversário e todo o peso que essa data carrega. Não sou muito simbólica. As mudanças de ano significam muito mais na ordem prática do que qualquer outra coisa. Fiquei pensando muito nessa Newsletter e o que eu gostaria de trazer para cá. Estive sem computador, o que dificultou o envio do mês passado. Mas, no fundo, eu não queria ter de enviar aquelas mensagens típicas de renovação. Janeiro é um mês terrível. Qual seria o sentido? Agora, em fevereiro, me livro dessa carga convencional e finalmente posso respirar: ufa, feliz ano novo.
Estive e estou resolvendo muitas questões médicas. Exames de sangue, cistos no cérebro, sisos inflamados. Mas, finalmente começo a sonhar, e tenho um sonho de mãos dadas comigo esse ano. Sou feita de pequenos sonhos-muito-específicos que coloco em vasinhos e observo crescer todos os dias. Só assim consigo viver. Nunca fui feita de grandes desejos. São sempre os detalhes que me fazem seguir. Em 2019, quando sonhava em morar fora e, nessa perspectiva, conhecer os lugares em que viveu Nabokov, lembro que me dobrava e desdobrava em planejamentos para conseguir passar um tempo na Rússia. A Rússia se convertia em milhares de detalhes que eu queria viver e em cores que se transformaram em lilás, azul-claro, cinza, tons de rosa e vermelho vaporoso. Quando penso na Rússia, é essa a imediata memória sensorial que nasce na boca, o céu mais bonito do mundo pelo avião e a emoção ao ouvir as pessoas falarem russo.
Mas, cortando para o ano anterior, eu fazia muitos planejamentos. E sofria porque não sabia se a Rússia seria possível para mim. Na época, fiquei muito frustrada quando uma pessoa, diante das minhas angústias, comentou ah para que disso, qualquer coisa você vai depois. Na hora, o choque de lidar com a classe média e a falta de compreensão de que aquela-era-minha-chance-e-que-eu-não-tinha-perspectiva-de-fazer-isso-em-outro-momento. Falei com uma amiga minha, que dividia os mesmos sonhos e os mesmos perrengues de ser uma bolsista no exterior, e ela me disse algo que nunca esqueci: rico não sonha. Então percebi por que para aquela pessoa — e para várias outras — meus sonhos nunca fariam sentido. Porque, para alguém como eu, tudo se converte em uma perspectiva de sonho, e se converte em muitos planejamentos e em muitas sensações. Não basta querer para realizar qualquer desejo passageiro. Por isso a Rússia e o ano de 2019/2020 foram, para mim, uma amostra primeira da minha capacidade de realizar pequenos sonhos. Que bom. Isso mudou tudo em mim.
Para o meu aniversário, escrevi meus dados biográficos:
DADOS BIOGRÁFICOS
Nasci em um ano de el niño
em um hospital sem ar-condicionado
ou ventilador
em um sexta-feira de janeiro
na década de 90
em Niterói
na hora do almoço
Nasci com enormes
olhos abertos de fome
Fui à Niterói só para nascer (ou
melhor, me carregaram até Niterói para ser)
Nunca vivi ali e mesmo assim
tem um Niterói na minha certidão
(para ver que nem sempre dá para confiar
no que vem em letrinhas num documento)
Fui um bebê chorão
e hoje sou uma mulher chorona
Nascer numa cidade que não é a sua cria
esses desterros de nascença
E desde a maternidade (não sei
qual) não reconheço lugar algum
Nasci para fora do dentro, entende
o que quero dizer?
São esses meus enormes
olhos permanentes estupefatos
de fome
Por aí:
Saiu o meu primeiro texto como colaboradora fixa da Revista Mormaço. Leia aqui.
Leituras & prazos:
Acaba HOJE o prazo para inscrição no Prêmio Sesc de Literatura.
Já que o assunto acabou passando pela Rússia, te convido a ler o novo poema da Thaís Campolina, que acabou de publicar o seu primeiro livro de poesias "Eu investigo qualquer coisa sem registro".
Por hoje, fico por aqui.