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#ÚnicaLinha 11: corpos e experimentos

NOSSOS CORPOS MOVEDIÇOS

Uma mulher com um peixe dentro de um vidro de olho transparente.
Um olho transparente.
Uma mulher sem graça com um peixe dentro de um espaço minúsculo.
Um peixe em um espaço minúsculo, sem chance de respirar ou nadar ou escapar.
Uma imagem sem graça de uma pessoa sem graça – quem pinta a unha de verde musgo? – com um olho enorme por trás de um vidro com um peixe aprisionado.
Insosso. Vazio. Meus olhos estão perdidos para outras partes, para minha mesa, para as canetas espalhadas, para o caderno pontilhado aberto, esquecido. A mesa desse outro verde muito mais verde que a unha da mulher sem graça. Tangerinas que amadurecem em um instante e no outro já estão podres. O mamão que escurece e mingua, fruta em decomposição. Talvez uma pintura renascentista de uma fruteira me dissesse mais do que a mulher com o peixe dentro de um vidro transparente. Ela me diz: prisão. Ela me diz: desrespeito. Ela me diz: talvez seja uma boa ideia manter um peixe dentro de um recipiente minúsculo para bater uma fotografia. Talvez alguém tenha dito: artístico.
Tudo bem, chega, interrompe. Você é uma pessoa muito, muito desagradável.
Mas eu continuo:
O café eu vejo primeiro pelas narinas. É o cheiro e o gosto imediato, a língua sedenta. Alô, alô, prepara um café para mim. Esqueço as frutas e o desgosto da mulher com um peixe minúsculo para sentir o aroma do café – imagético. Grãos que se espalham nas mãos, no corpo, que tento sentir pelos poros, pelos dentes, pelo sobrolho.
Abro os olhos.
Translúcido, seu corpo por trás da névoa. Opaco, seu corpo sobre o lençol úmido. Nossos corpos movediços. Um desejo inteiro de afundar.
A casa está anundada, você diz.
Inundar, corrijo.
Sim, a casa inundada.
Besouros tortuosos, suas costas se abrem feito um grande dragão vermelho.
Me desculpe, murmuro. Me desculpe por dizer que a imagem era insensível.
Não, você está certa. Era uma imagem tenebrosa.
Suas asas de dragão se fecham sobre o tórax, contrai o peito.
Está com frio?
Vou me levantar, você diz.
Quero esticar o braço, mas meu corpo ainda é pólvora. Meu corpo ainda é cera. Afundar as mãos em adubo fundo. Mas eu não posso me levantar. Tenho apenas os delírios oníricos.
Seus sonhos são casca. Seus sonhos são sobre a podridão no canto da parede. Ardor. Langor. Repito palavras a esmo para que você me olhe.
Mas você não olha mais.
Suas asas se contorcem dentro de um vestido bege. Bege cor de saco de batata. Sem forma. Ela não sabe o que realmente penso sobre suas roupas. Não se diz isso a nenhuma pessoa.
Vai trazer café?
Vou, você responde sem se voltar. Suas omoplatas de dragão escarlate na pele cor de cera contra a luz da janela. Lá fora, uma mariposa preta. Aqui dentro, uma mosca azul.
Me desculpe.
Ela nada diz. A boca se abre e estala feito um ovo que se rompe na frigideira.
Não, você tem razão.
A madeira estala em algum ponto lá em cima. Uma grande gota de chuva surpreende a mariposa no vidro da janela. Passos de um lado para o outro. E um grito agudo, contínuo, absoluto.
Os vizinhos, sussurro.
Sim, os vizinhos.
Jesus, o grito não para nunca.
Ela leva o dedo indicador até os lábios e aponta para cima.
Passos, dessa vez diferentes, pesados, se deslocam de um ponto para o outro. Uma bofetada encontra o rosto da vizinha. A seguir, o silêncio.
Olho para o teto, como se pudesse enxergar, por algum erro na realidade, o que acontece ali em cima. Depois me volto para você. Suas órbitas são grandes bolas aquosas.
Um estrondo rompe o ar e a chuva cai, por fim, por inteiro, junto das lágrimas que se formam no rosto amarelado.
Quero me erguer, mas não posso. Ainda sou feita de muito pouco. Submersa.
Antes que ensaie palavra, ela me pede quietude. Termina de calçar as meias e limpa o rosto com as costas das mãos.
Você vai voltar?
Não demoro, você diz. Nunca demoro a voltar.
Hoje fico apenas com esse texto, fruto de um experimento e de um desconforto, que quis compartilhar com você em primeira mão.
As imagens selecionadas, no geral, são do Pinterest, minha rede favorita.
Em breve, esse e outros textos estarão no meu blog e também no Medium. Nos vemos em breve!
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Um beijo 😊
