O CORPO PEDE SOCORRO
Sobre transtornos, escrita e a escolha de não ter filhos ou, ainda, sobreviver ao/no corpo
“I´m a radiant void” - V.N.
O corpo pede socorro. O meu disse: chega. Começou com sensações esparsas de inquietação e pensamentos intermitentes de morte. Depois vieram as horríveis crises de ansiedade. A primeira me deixou apavorada diante da possibilidade de sentir aquilo de novo. O pior aspecto prático sobre uma emergência psiquiátrica é que muitas vezes não pedimos ajuda, não procuramos um hospital, simplesmente porque sabemos como seremos (des)tratados. Já a segunda crise me fez dizer chega. Tive de aceitar a minha derrota.
Aumentei a dose das medicações e preciso dizer, como alguém que tem tentado melhorar, que é muito frustrante. É a sensação de perder uma luta consigo mesmo. É uma batalha constante contra uma parte desse órgão-cápsula que achou por bem vir de outra maneira e os anos, as circunstâncias, a genética, enfim, contribuíram para adoecer. É aceitar que nunca vou me sentir como 98% da população e que esse mundo será sempre estrangeiro e dolorido. Uma médica me disse: para você é mais difícil viver. Outra disse: você nasceu assim, vai continuar vivendo assim. É o que tenho tentado. Aceitar, no nosso sistema, que não sou funcional ou produtiva, que o mundo será sempre estrangeiro, mas que mereço viver.
O corpo é muito frágil. Tenho noção dessa fragilidade, nunca fui alheia a ela. Sou antes de tudo um corpo e uma abstração que habita esse corpo. É um tormento, não coloco de outra forma. Tenho um corpo, porque ele é um corpo que dói e busca prazeres. É antes de tudo pele e órgãos, mas temos essa grande massa orgânica que pensa dar conta de tudo e funciona à sua própria maneira. Não sei estar fora desse corpo-cápsula-casulo. Há algo que não pode escapar. O pânico de ter sido lançada no mundo. Um esquecimento traumático de nascer. O grande vazio que habita o antes e o absoluto vazio que vem depois.
E o que fazemos com esse passado que já nasce conosco?
Tenho estado nesse corpo. É o que tenho dito há 27 anos, idade esquisita que chegou no dia 23 [leia-se: anteontem]. Outro dia sonhei com meu tio, agora me recordo. Meu tio nasceu no mesmo dia que eu e agora ele não existe mais. Minha avó acredita que minha sobrinha mais nova é reencarnação dele. Poderia dizer que budistas são assim, mas mães são assim. Meu pai diz que nada disso é real e que meu tio não existe mais. Minha avó tem oitenta anos e um filho a menos – deixo ela acreditar no que quiser. Tenho apreço especial por essa sobrinha. Vejo muito dela em mim e isso me preocupa. Não queria ver meus genes em ninguém e tenho muito medo de que ela sofra. Às vezes G. e eu pensamos como seria ter um filho e nossa conclusão é sempre a mesma: um horror genético. A autoconsciência apenas agrava o sofrimento.
Consigo entender, mas não concordar com a procriação. Minha autoconsciência jamais me permitira criar outro indivíduo – meu ou de qualquer um. É um inevitável: ser uma mulher e pensar sobre. Somos programadas para isso. É uma fatalidade. Não há como se arrepender dos filhos, voltar ao status quo de ter dado ao mundo um indivíduo. E ainda há todo o lamento de frustração do ego ferido de fazer nascer uma criatura sua e que nunca será sua, que não é você recriado, nunca foi feito para realizar os seus anseios, mas os próprios anseios, e pode vir defeituoso (sic) de diferentes maneiras. Penso nas mães monstruosas. Maria Augusta é uma, e ela sim me interessa – ela e Helenira são as protagonistas do Vazio que escrevi [ainda não publicado]. Não sei o que pensar do livro, mas é uma narrativa importante para minha escrita, essa coisa que chamo arte.
Ser artista, nascer artista, estar artista, permanecer artista. Soube, desde que me veio a Memória, que não poderia ser outra coisa. Apenas sabia ser nada – e depois descobri que esse nada é o que chamam arte. Não sei quem escolhe escrever, para quem a escrita não nasceu da necessidade, mas da vaidade, do hobby, do luxo de falar sobre outras gentes, aqueles-que-sofrem, o tema da moda, o estilo da moda. Só sei escrever das minhas gentes, do meu mundo e da dor de estar no mundo. Sou uma escritora para dentro e me parece que existem esses escritores para fora. Sinto que somos de tipos distintos, mas posso estar errada ou mudar de ideia – mudo o tempo todo.
Uso a máquina para buscar um ritmo, uma respiração, para encontrar o pensamento atrás do pensamento. Mas ele é um mistério, nunca está, está fora além – ou melhor – para dentro de mim.
Escrevo porque nasci desencaixada do mundo, porque estive num silêncio absurdo e não tenho medo do deslumbramento. Tenho me medicado para sobreviver, porque é preciso estar viva para escrever. Tenho negado o terror da morte com meus ansiolíticos que encobrem os ataques de pânico, as crises de ansiedade, a depressão. O psiquiatra me pergunta de sociabilidade e digo que segue terrível desde quando me escondia nas pernas da minha mãe para não cumprimentar conhecidos na rua.
Um amigo me diz que precisamos de um motivo para viver. Ele conclui, com razão, que arte é o meu motivo. Talvez porque eu me interesse muito pelos detalhes e contradições da natureza humana, porque me interesse mais pelas perguntas do que pelas respostas, ou porque o mundo é realmente um lugar estranho e sem sentido.
Em janeiro também perdemos um dos nossos grandes artistas. Ainda é irreal pensar que não teremos mais o David Lynch no mundo, mas que bom que a arte dele permanece. Os seus quadros, as suas músicas, os seus filmes e os seus ensinamentos. A arte, no fim, é também uma resposta à morte. Não quero escrever sobre como a arte do Lynch me marcou, porque muita gente já falou sobre isso. Mas deixo aqui a minha alegria absoluta por ele ter existido na história do mundo.
Quer papear? Me conta o que achou? Responde esse e-mail ou deixa um comentário <3
Quer conhecer mais o meu trabalho? Acesse o site ou me segue no Instagram :)
Também passei por momentos delicados na minha vida. Durante esse momento de vulnerabilidade, conheci excelentes profissionais que me acompanham até hoje. Realmente, a arte é o que nos salva. Através da escrita, pude organizar melhor meus pensamentos e encontrar uma saída para minhas dores e vazios. Espero que, dentro do seu tempo, encontre os motivos que lhe fazem pulsar. Lindo texto!
esse seu texto me salvou um pouco hoje!