Essa semana assisti ao documentário Witches, no Mubi. A chamada dizia se tratar do tema das bruxas ao longo da história. Mas não era exatamente o que eu esperava. O documentário começa com a narradora contando a sua identificação com essas mulheres perseguidas, queimadas, torturadas e mortas, na maioria das vezes por serem parteiras, curandeiras ou simplesmente por desafiarem de alguma maneira a dominação masculina. No entanto, o documentário toma outro rumo, explorando bastante a questão da depressão e psicose pós-parto. Mesmo assim, é bem interessante e recomendo a todos.
Mas, fiquei na questão das bruxas. Eu também queria ser uma bruxa quando criança, muito na perspectiva de uma menina que lia os livros do Harry Potter. Em casa, tínhamos livros sobre ocultismo. Ali, eu brincava de fazer magias e queria que todos acreditassem no meu contato com o oculto. Utilizava vidrinhos antigos de xampu e lama para misturar minhas poções, tinha uma varinha e um cordão de pentagrama. Uma prima, já adulta, tinha uma vassoura atrás da porta, e eu queria muito ter uma igual. Eu também quis ter um crânio verdadeiro e fiquei muito decepcionada quando descobri que não poderia (inimaginável para Luizzinha, mas é crime). Compreendidas como um exemplo do que não ser, as personagens alternativas (muitas vezes vilãs) me fascinavam. Porque eu não me identificava com as mocinhas, a sua necessidade de agradar, a sua estética austera e sem graça. Elas eram chatas. Eu me encontrei na estética gótica, a melancolia e a atração pelo grotesco. A sensualidade dos vampiros.
Hoje percebo que, além da tendência de estar em meu mundo particular, viver em geral sempre foi muito difícil para mim. Fazer amizades, ter quem realmente me amasse e compreendesse apesar de – de o quê? E aí é que entram as bruxas. Mulheres que foram mortas porque não correspondiam ao que se esperava delas socialmente, ou porque sofriam de algum transtorno psíquico que era interpretado como algo demoníaco, ou simplesmente porque calhavam de não agradar alguém. Não precisamos ir tão longe. No Brasil colonial, mulheres foram perseguidas e mortas por bruxaria. Frágeis, mulheres eram vistas como tendentes à sedução demoníaca e à loucura pela igreja e depois pela ciência. Décadas mais tarde, mulheres eram descartadas por meio da psiquiatria. Eram internadas e esquecidas– como diversos outros grupos de indesejáveis. Se tivesse nascido um tempinho atrás tenho certeza que teria sido internada, lobotomizada ou morta. Muitas de nós.
No entanto, quero dar ainda mais um passo. Não quero falar da questão social – apesar de ser um pano de fundo constante e inevitável – mas da questão existencial. Há uns meses comecei a assistir a X Files e fiquei apaixonada pela série. Percebi de imediato uma fonte em comum com Twin Peaks. E comecei a brincar que sou um híbrido (para quem não conhece, trata-se de uma mistura genética entre humanos e alienígenas). É como me senti a vida toda: um Alien. Algo que não é humano e que não pertence ao mundo. Uma sensação de exílio que é dentro de mim. Séries como X Files, Twin Peaks e Doctor Who dizem respeito justamente a pessoas estranhas em circunstâncias estranhas, cujos prazeres estéticos são maiores ou menores, e as obsessões maiores ou menores. Eu me identifico com essas pessoas estranhas. Elas me deram espaço para querer ser quem sou sem medo. O lugar da arte na construção da nossa subjetividade talvez não seja tudo. Mas é alguma coisa. Me permitiu viver. Isso talvez seja muito.
Eu queria pertencer a outro mundo e fantasiava com ele constantemente. Ia dormir concentrada nas minhas fantasias, torcendo para sonhar com elas durante a noite. O mundo real me interessava muito pouco. Os livros, por outro lado, eram tudo para mim. Os livros moldavam meu vocabulário, meu interesse, me ensinaram a escrever. Queria conhecer os clássicos de todos os países. Apenas com cerca de 14 anos comecei a perceber que precisava participar do mundo real. Comecei a parar de levar livros em todas as situações sociais (inclusive festas) e fazer um esforço para estar no ambiente. Era um desconforto.
Crescer em um mundo que não foi feito para você dói. Primeiro, e muito cedo, vem a descoberta. Você sabe que é diferente, mas não sabe o motivo. Algo estranho sobre questões neurológicas é que, além de constituírem o ser, não há como saber que elas existem até que surja o outro. Achamos que todos sentem e percebem o mundo da mesma maneira que nós percebemos. Uma pessoa daltônica apenas descobre que é daltônica quando faz um teste de visão. Então alguém diz ei você não vê como todo mundo. Isso me perturba: não temos como saber o que é ser senão pelo nosso próprio corpo. Nunca saberemos o que é estar em outra consciência, ser o que não somos. Cada um vê cores ligeiramente diferentes, ainda que similares. Outros, são daltônicos e enxergam o mundo de forma mais singular do que a maioria.
O que ocorre quando não sabemos o que há de errado (porque o mundo deixa claro que há algo de errado) é o sofrimento psíquico. Por que não sei viver como todo mundo? Por que não me compreendem, quando é tão claro o que digo? Por que me dizem que algo é óbvio se não é? Por que não consigo ouvir essas músicas ou suportar esse ambiente? Por que acabo dizendo a coisa errada? Dizem que sou preguiçosa, então devo ser. Dizem que sou maluca, então com certeza sou. Passam-se os anos e os diferentes diagnósticos de sofrimento mental: depressão, ansiedade, síndrome do pânico, síndrome do transtorno pós-traumático, fobia social, ideação suicida etc.
Eu me tratei por anos. Por muito tempo achei que não fosse melhorar. Viver era insuportável, inútil, sofrido. Mas melhorei. E por mais que melhorasse, algumas questões não se resolviam. Meu cansaço extremo, minha irritação com pequenas coisas, meu estresse, minha dificuldade de me comunicar, e tantas outras coisas que eu identificava como “meu jeito”. Não tinha esperança de que poderia deixar as salas dos médicos. Até vir a suspeita, os testes, as sessões e o diagnóstico. Então descobri que meu cérebro possuía um funcionamento diferente. Que eu nasci assim e vou morrer assim. E, de certa forma, aceitei de bom grado esse novo lugar. Porque sabendo como meu cérebro funciona, posso criar mecanismos para ter mais conforto no dia a dia e mais qualidade de vida. Algumas pessoas passam pelo luto do diagnóstico. Demoram a aceitar que não há um remédio para o que elas são. No meu caso, foi um certo alívio. Uma reconciliação comigo mesma. Foi a peça que faltava para o quebra-cabeça do que eu sou. Tudo passou a fazer sentido.
Ainda assim, eu tive medo do estigma e não queria falar sobre isso abertamente em um primeiro momento. Tive medo. Minha primeira sensação de chegar ao mundo exterior era acrescentar mais um item ao estigma que eu já vivia como paciente psiquiátrica.
Quando vejo as pessoas na internet dizendo que “todos são [insira uma neurodivergência] agora”, percebo como não se compreende nada sobre 1. Processos diagnósticos; 2. a complexidade que forma os elementos de um laudo; 3. o que significa estar nesse lugar. A internet é um universo singular para cada um. Quer dizer, esse é um assunto que pode aparecer demais para mim, mas nunca aparecer para você. Nas minhas redes têm gatos, na sua pode ter cachorros. Eu pensei: por que não falar um pouco sobre isso? Tudo que forma um cérebro como o meu? Mas eu tive vergonha. Quem iria querer saber sobre isso? Outro fator é que eu também não queria me tornar obcecada pelo assunto. No entanto, a obsessão é uma dessas características que me constituem. Era inevitável que eu lesse artigos e tentasse me entender melhor. É assim desde sempre.
Faz um ano e meio que recebi o meu diagnóstico. Desde então acabei lendo e descobrindo muita coisa sobre mim. Há dois anos, eu sabia nada ou muito pouco sobre TEA (transtorno do espectro autista). Há poucos anos, mulheres nem mesmo eram diagnosticadas como autistas. Como tudo na ciência, o parâmetro é branco e masculino. Há alguns anos, eu teria o que se chamaria de Síndrome de Asperger, mas esse é um termo em desuso. O Asperger nada mais é do que um autista sem prejuízos intelectuais. Recentemente, eu li o DSM-5, que demarca todas as doenças e transtornos mentais com seus critérios diagnósticos e comorbidades comuns. Os critérios diagnósticos do autismo são complexos e você precisa preencher uma série deles. Ainda, isso precisa ser manifestado desde a infância e precisa ter trazido prejuízo prolongado na sua vida. Ainda, como é um espectro, essas características se manifestam de formas distintas em cada pessoa. Lendo, eu ri, porque dou check em todos os critérios. Mas, claro, fui diagnosticada por uma neuropsicóloga, por uma psiquiatra e por uma neurologista competentes e atualizadas sobre o assunto. Muitos – mas muitos – médicos não entendem nada sobre autismo, menos ainda em mulheres adultas.
No trabalho, precisei dizer para a minha chefe que sou TEA. Foi uma situação que me angustiou muito, porque no outro trabalho eu tinha um acompanhamento e nesse a coisa passou batida. Ter de comunicar algo assim me deixou extremamente ansiosa e transtornada. Tenho muita dificuldade para falar, ainda mais algo assim. Mesmo tendo informado no setor médico, o fato de eu ser PCD (o autismo é equiparado a uma deficiência pela lei) não foi levado em consideração. Quando me vejo tendo de expor o meu diagnóstico, é como sair do armário. Quando preciso de adaptação, preciso lutar contra a sensação de fraqueza. Preciso lutar contra a naturalização do meu sofrimento desnecessário e desmedido. Inclusão sem adaptação não é inclusão. Passei a me enxergar de outro lugar e a compreender como meu cérebro funciona e que as minhas necessidades não são como o da maioria. Que eu mereço viver bem. Isso é difícil.
Me marcou o que a neuropsicóloga me disse, ao me entregar o resultado: “bom, você sempre viveu assim e vai continuar vivendo”.
Retornemos às bruxas. A nossa compreensão sobre doenças e transtornos mentais é histórica e social. Há alguns séculos, uma mulher poderia ser queimada na fogueira por ser uma bruxa. Depois de uns anos, podia ser tratada como histérica. Um pouco depois, esquizofrênica, psicótica. Sangrias, internações, lobotomia, terapias de choque. Duas décadas passam e surgem os transtornos borderline e bipolar. O sistema passou a ser o de internação. Hoje, a internação perdeu força para a medicalização. A lógica mudou menos do que gostaríamos. O imaginário social ainda é o de exclusão. Muita gente acha que pessoas como eu não deveriam existir. Ou que a criação, vacinas, ou qualquer outra coisa poderiam curar algo que não tem cura.
Adoro o vídeo de um menininho em que a irmã dele diz: “ele sofre de autismo” e ele retruca, rindo: “eu não sofro, eu só tenho”. Eu não sofro, eu apenas sou. Não sei como seria se não fosse assim e não odeio quem eu sou. O mundo é que não está preparado [para nós].
Um beijo,
Para conhecer:
Milena Martins Moura é poeta, editora, tradutora e pesquisadora brasileira. Seu livro O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão foi semifinalista do Prêmio Jabuti 2024 na categoria poesia. Milena é autista e fala abertamente sobre isso.
Simone Campos é uma escritora e tradutora brasileira. Nada vai acontecer com você (2021) é o seu livro mais recente. Simone é autista e também aborda isso nas suas redes sociais.
O IBGE estima que 2 milhões de pessoas no Brasil tenham autismo, o que corresponde a 1% da população. Mas estudos indicam que há 4-5 milhões de autistas no Brasil.
Autistas têm uma chance 8x maior de tentar ou cometer suicídio do que a população em geral.
Maiores chances de comorbidades, como depressão, ansiedade, TOC, além de problemas gastrointestinais, respiratórios e doenças autoimunes.
Cerca de 85% dos adultos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) estão fora do mercado de trabalho.
Famosos como Anthony Hopkins, Greta Thunberg, Aurora, Sia e Tim Burton são autistas.
"Me marcou o que a neuropsicóloga me disse, ao me entregar o resultado: “bom, você sempre viveu assim e vai continuar vivendo”." infelizmente ouvi isso da neuro quando recebi meu diagnóstico (há quase um ano). é foda... salvando aqui o texto pra ler mais vezes. como tea me identifiquei muito e concordo com o que você falou.
como pessoa autista (e que sempre amou histórias de bruxas, doctor who, arquivo x e twin peaks), me senti muito vista no teu texto luizza. pode ser difícil abrir isso para as pessoas mesmo - eu não falo muito a respeito disso pra quase ninguém, especialmente porque existe uma grande sensação de "e daí?", como se não houvesse um interesse sincero em entender o que é ser uma mulher autista neste mundo. mas é isto, seguimos sendo. vamos ficar bem. ♥