Olho para a minha gata e sinto que ela tem de mim essa obsessão pelas coisas. Essa obsessão que nasce da sede de saber o fundo e o inteiro de pedacinhos do mundo. Não entendo o inteiro, então busco o pequenino. Sede grande e insaciável de ver-sentir-saber.
O desejo de saber pelo sentir faz a literatura me embrulhar e regurgitar a cada dia, criatura enorme e repartida de pedaços que vou deixando e colhendo pelo caminho nascido do encontro da palavra com a vida, da palavra com o gesto, da palavra com a memória que é a invenção do passado. Passado e criação como a lã de todos os fios que me constituem. A escrita como a vida, indissolúveis inesgotáveis irmãs siamesas ligadas pelo ventre, sangue venoso que se mistura em luta intensa e furiosa, em dança toda harmoniosa de amor.
Mas, de volta à gata. Entre frutas, legumes e caldo de cana, na feira de domingo, havia uma gatinha mirrada e amarela de orelhas enormes. Minha irmã queria o irmãozinho macho e pensou: vou ali comprar umas frutas e já volto. Quando voltou, restava a fêmea. Resolveu levá-la. A gata amarela ganhou nome de princesa da Disney. Pequenina, escondia-se entre as caixas de mudança. Como eu estava morando ali de passagem, não tinha por que chamá-la também minha.
Ainda assim, ela permanecia horas e horas junto de mim, enquanto estudava, trabalhava ou lia. À noite, dormia comigo e miava por carinho de madrugada. Nunca a chamei pelo nome que foi batizada. Na época, a FLIP mais bonita que vivenciei estava prestes a acontecer. Não tive dúvidas de que aquela gata se chamaria Hilda ou, como é sempre chamada, Hildinha.
Hildinha anda comigo pela casa o dia todo. Tem ciúmes dos meus livros e de qualquer coisa que desvie minha atenção. Reclama, miando, bufando e resmungando. Se está muito calada, estranho. Nunca vi gata mais comunicativa. E tão certa das circunstâncias da vida. Ela aceita ir ao veterinário, tomar remédios e apenas me olha com os olhos cheios de interrogação e medo. Não passa pela cabeça dela se rebelar, morder ou arranhar. Simplesmente nos olha ou tenta fugir, cheia de mágoa. Aceita tudo que considera importante. Mas não tolera que lhe cortem as unhas ou limpem os ouvidos. Quando tem medo, agarra-se a mim numa confiança reta. Gosta de carinho de todo mundo, mas é a mim que recorre para maior segurança. Meu colo se torna alento para as muitas idas a exames e consultas.
Na hora de dormir, quer silêncio. Pede que eu me deite, pede que a luz se apague, que ninguém fale nada. Pode ganhar carinho por horas, sem cansar. Quando deseja minha atenção e estou ocupada, sobe na estante de livros, junto às obras de Nabokov, e ameaça derrubar os bibelôs. Toda manhã corre comigo para o banheiro, pede para beber água da pia, e depois pede para beber água fresca do filtro da cozinha. Não suporta que nenhum pote da casa esteja vazio e nem que a Ada, sua irmã felina mais nova, faça algo de errado. Tem curiosidade por tudo que fazemos e acha que todo pacote dos correios e todas as flores são para ela.
Hilda é uma gata delicada e nos cutuca com a as unhas retraídas para não nos machucar. Medrosa, não sobe em lugares altos de jeito nenhum. Dramática, grita e corre em desespero se uma gota de água encosta em seu pelo ou se quase pisamos em seu rabo (não precisa pisar, mas precisa pedir desculpas). Quando volta do veterinário, gosta de andar por todos os cômodos e lamentar em voz alta o sofrimento que a fizeram passar. Em sinal de revolta, abre as gavetas do armário e joga minhas roupas no chão. Quando algo não é feito do seu jeito, vira-se de costas e demonstra todo o seu desprezo com olhadelas repreensivas.
Digo isso tudo apenas porque não existe palavra que substancie o amor. Quando estou doente, Hildinha se deita com o focinho junto do meu nariz. Se choro, ela se desespera, rodeando minha cabeça e miando sem parar. Me olha com olhos enormes, apaixonados. Ela não me deixa esquecer de que está ao meu lado. Preciso, muitas vezes, me acalmar para acalmá-la. É meu amor inteiro, completo. Uma coisinha de cinco quilos e quase seis anos.
Hilda salva a minha vida, todos os dias, e me lembra que preciso estar viva.