Por que falar? Por que não falar? #ÚnicaLinha13
Ele: Por que não se falar?
Ela: Por que se falar?
Ele: Por nada… a gente não tem mais nada para fazer
(M.D.)
Ontem assisti ao segundo filme da trilogia “Before Sunrise”. Gostei mais do segundo do que do primeiro. Por isso talvez tenha demorado tanto entre um e outro. Os personagens são mais maduros, principalmente o homem, que me pareceu muito menos irritante. Ontem foi um dia bom. Fui ao jardim do museu da república tomar um café, ler um pouco. Saí de uma crise de depressão/ansiedade na última semana, e as consequências estão no corpo: além do que já sabemos, muita dor de cabeça e dor no estômago. É sempre assim. Por isso tomei café com leite, quantidade moderada. Adoro sentar ao ar livre, ler alguma coisa, escrever. Meus passeios no geral não são muito planejados. Vou deixando as coisas acontecerem. Pensei, pela milésima vez, em comprar uma canga. Mas não tem problema, porque o vestido vai direto na grama.
Estou quase toda de rosa. Só uso quatro cores: preto, vermelho, rosa claro e, como cor acessória, branco. Tenho me interessado cada vez mais pela hiper feminilidade, visto cada vez mais como os elementos associados ao feminino são inferiorizados e como isso é violento. Nos filmes, as vilãs são hiperfemininas. Na internet, ódio às mulheres fãs, por exemplo, de Hello Kitty. Não acompanho muito bem essas tendências nas redes, mas não as enxergo como inocentes: tudo começa com uma piada, mas uma piada violenta e masculina. Nós meninas aprendemos que o legal é ser “diferente”. Não gosto de rosa, a boca se enche para dizer. Claro, aprendemos que tudo isso é inferior, fútil, vulgar. Por isso, adulta, acho uma liberdade o interesse pelo hiperfeminino, por sua ressignificação.
Sempre fui muito feminina. Gosto de misturar elementos em aparente oposição. Estéticas de subcultura, como o gótico, mas também o vintage. Há, por exemplo, algo na fofura que está intrinsicamente ligado ao horror. Como quando queremos apertar um bichinho fofo. Na agenda dos “core” cibernéticos, há o creepycute, uma síntese dessa ambiguidade. Misturo muitas referências, apesar de nunca ter “entendido” bem de moda – é algo muito instintivo e pessoal. Uma necessidade de expressar também pelo vestir.
Quero me expressar em tudo. Às vezes me sufoco de mim: não consigo ser um pouquinho genérica? Aos poucos, tenho decorado minha casa. Agora, algumas das minhas telas favoritas estão pelas paredes: Munch, Botticelli, Schiele, Monet. Um quadro de borboletas Morpho, meu tipo favorito de Nymphalidae. É estranho e um pouco assustador como tudo se reveste de mim. Morar sozinha tem sido um desafio, bom e ruim. De um lado, morar sozinha me fez materializar o que eu sempre soube, o que sempre fui: sozinha. Não é simplesmente a solidão, que eu adoro. Adoro o silêncio, viver e sentir meus pensamentos. Ser sozinha é não ter um lugar a que retornar. Nenhum pertencimento. Ninguém para quem ligar quando a dor for grande demais. Para onde ir quando tudo der errado? A quem recorrer? É a dor do desamparo de só ter a mim mesma. Perceber que quem deveria me amar primeiro abriu tão cedo mão de mim.
Formei, no entanto, uma pequena família, a única possível: eu, Ada e Hilda. Elas são essenciais para me manter mais ou menos sã. Hildinha cuida de mim nas crises, não me deixa esquecer que preciso estar viva, que às vezes é bom viver. Como quando escrevo, pinto um quadro, vejo uma borboleta, uma folha, o sol se põe, é fim de tarde e estou tomando Aperol e lendo um livro particularmente bom. A verdade é que tenho cada vez mais consciência da minha fragilidade e me assusto. Sou tão vulnerável. Algumas pessoas já me disseram que têm medo de mim. Sei que algumas têm mesmo receio de se aproximar. É estranho. Sim, sou introspectiva, e um pouco antissocial. Vivi tanto tempo com medo. Não sei como se aproximar das pessoas. O trauma faz estragos irreparáveis.
Ainda não me acostumei a morar na zona sul. Tenho achado as pessoas muito mal-educadas. Elas tratam quem as serve com a arrogância de quem foi sempre servido. Mas essa é uma percepção que tenho construído aos poucos e é outra história. Este é outro lugar a que não pertenço. Outra consciência que me veio tarde: a de que quase todo mundo ao meu redor é de uma classe média que não tem nada a ver comigo. Gente que viveu a vida toda a dois passos de tudo. Uma facilidade e uma qualidade de vida que me assombram, eu que vivi toda a vida na Penha. Sinto falta da Penha. Na pandemia, quando não precisava sair do meu bairro, tudo ficava em certa harmonia. A maioria dos penhenses não sai de lá. Vive a vida no bairro e arredores. Estuda, eventualmente trabalha e assim morre. Meu livro é também sobre isso. Meu desconforto foi ser deslocada intelectualmente de onde eu pertenço socialmente. Quando fui retirada e jogada no meio de pré-adolescentes da classe média, tive vergonha de onde eu vinha. (Ainda tenho choques ao ver pais, avós e bisavós com universidade. Na minha família, alguém com ensino superior é muito raro). Não tinha nada a ver com aquelas pessoas. É uma estranheza que vai se agravando na medida que as relações sociais vão se afunilando, agora que curso o mestrado.
Na minha infância tocavam lá em casa para brincarmos na rua. Eu ia e voltava da escola andando com os colegas. Fazia bolas de água que estouravam no quintal. Mas eu também não tinha nada a ver com meus amigos da Penha. Não sabia conversar com um nem com outro. Minha família sempre foi ruim em conversas. Ninguém procura ninguém e reclama que não é procurado. Eu vivia coisas que não sabia dizer. Uma solidão indizível. Então me tornei a vítima ideal. É assim quando nascemos mulher. De repente, o vidro craquela, se rompe. E estamos quebradas. Metade da minha vida foi aprendendo a sobreviver. Eu sobrevivi. Tenho aprendido agora a viver.
Para saber mais:
Sobre a hiper feminilidade, eu gostei desse texto aqui.