Quando um livro começa?
Quando me perguntam sobre o meu processo criativo, costumo dizer que tenho temas, e dos temas se desenvolvem narrativas. Os temas perpassam a escrita e formam projetos. Os projetos costumam ser livros. Desde o diálogo, não publiquei outros livros. Mas agora me vejo com livros escritos. E livros a se escrever. Esse processo é de continuação e rompimento, ida e retorno. Com o diálogo, tentei dar concretude a uma escrita que considerava abstrata, híbrida. Depois, continuei esse processo em outro livro, vamos chamar de B, que busca ampliar o universo de eu-dois (do diálogo) para um eu-família (livro B). Esse livro começou a ser escrito em 2020. A escrita dele foi de amadurecimento e consciência do meu próprio processo de escrever narrativas longas. Tive a sorte enorme de aprender a escrever lendo e escrevendo. Isso significa que só tive acesso a fórmulas, dicas e ensinamentos de cursos de escrita quando já era uma escritora. Isso me permitiu olhar e entender o que funcionava para mim ou não sem a ansiedade de seguir métodos x ou y. Fico preocupada vendo tantos escritores iniciantes se munirem de mil fórmulas ao invés de primeiro experimentarem a própria escrita (mas isso é assunto para outra carta).
Vejo todos os meus escritos como peças dentro de um mesmo e infinito quebra-cabeça. Claro que eles podem ser lidos de forma independente, mas é muito evidente, para mim, de onde partem. Esse segundo livro foi o desenvolvimento de alguns temas que me interessavam, mas principalmente a necessidade de ampliar o universo uno para um universo familiar. A construção desse mundo se deu a partir de pequenos fios que fui traçando, pontos de luz que seguia mais ou menos cega, mais ou menos fascinada. Recentemente, posso dizer que está terminado. Já não queria estar com ele, mas até que seja publicado, ainda vou ter de conviver com o seu cadáver, reler e reler.
Então eu me vi numa necessidade de retorno ao meu universo híbrido e onírico. E voltei a um projeto anterior ao diálogo, menos palatável e mais explícito. Foi o livro que descartei e que agora sentia necessidade de manusear novamente. A maior parte foi escrita por volta de 2016. Disso surgiu um livreto, que me consumiu e me deixou com muitas dúvidas. Me lembro de sentir o corpo em febre, à noite, com aquela criaturinha esquisita e perigosa, que não sabia se valia a pena. Ainda, no meio disso tudo, tinha a ideia de desenvolver mais o tema da sexualidade, que já é uma temática que perpassa de forma constante a minha escrita (e as minhas pesquisas acadêmicas).
Queria escrever um livro infantil, uma Alice perversa, algo entre primavera sombria, Lewis Carroll e a história do olho. Mas, eu tive um sonho. Tenho muitos, em especial pesadelos. Alguns desses pesadelos são narrativas completas, filmes a que assisto enquanto durmo, criações do inconsciente. Vejo como meu universo interior é complexo, imageticamente exuberante e infinitamente perverso. Nabokov diz, em ada ou ardor, que o cérebro humano pode tornar-se a pior câmara de torturas que ele mesmo inventou. Vivencio isso todos os dias. Certa noite, tive esse sonho. Era uma história com início, meio e fim. Dali surgiu o que parece um próximo livro, que comecei a colocar no papel nesses últimos dias do ano, em meu caderninho. Já sei o enredo, o meu cérebro me presenteou com ele. Só que isso não é o mais importante em uma história. Como se conta é muito mais relevante, e foi isso que fui desenvolvendo nas últimas semanas. Sabia quem era a narradora, mas não sabia como aquilo seria contado. Agora parece que sei, ou desconfio saber. Não crio fichas de personagens, como alguns escritores. O que faço é escrever. Escrevo para escrever, e todo livro acaba tendo o seu Doppelgänger.
O tempo da arte não é o nosso tempo. Quando não tenho respostas, espero. Deixo as questões repousando em formol, dou umas batidinhas no vidro e aguardo. Eventualmente, as respostas surgem. O processo do livro B foi demorado. Havia questões cujas respostas precisavam de tempo. Enviei o livro para alguns amigos. Ouvi a opinião deles (muito obrigada). Mudei algumas partes. A reescrita é o processo mais demorado, mais enfadonho e mais necessário para um livro.
A criação, sem dúvidas, é o mais prazeroso.
Percebi que estou escrevendo sobre processo criativo enquanto o ano termina. Não dou muito significado para essas datas. Me surpreende que, por ora, não esteja deprimida. Essa época do ano costuma ser difícil, porque entre o natal e meu aniversário são apenas vinte e poucos dias. Ontem duas amigas de infância vieram aqui em casa e assistimos a vídeos antigos que guardo de um HD. Sempre gostei de fazer registros. Em um dos vídeos dizemos algo como bem-vindo, 2010! Isso faz 15 anos. Em outros há um 2008 escrito no fundo. Os áudios são terríveis, estourados. Isso faz 17 anos. Naquela época eu já escrevia. Faço a contagem dos anos pelos cadernos que preenchi. Talvez isso só signifique que continuarei a escrever. Mas gosto de números ímpares, e anos ímpares significam uma idade ímpar na minha certidão.
Feliz 2025. Continuamos a escrever.
Esse ano publiquei, além desta, oito newsletters. Um número modesto, mas que me deixa feliz. Esses textos compõem de maneira importante meu universo criativo e me permite maior intimidade com vocês que me leem. A seguir, uma pequena retrospectiva que te convido a ler:
Acordei com saudades tuas
Acordei com saudades tuas. E a saudade, essa palavra dupla que só pode ser dita na nossa língua, tem o bafejar matinal da melancolia que eu tento disfarçar com o café.
Tudo eu inventei, inclusive você
Subimos até o telhado. O céu, imensidão sem luzes. Digo: amanhã. Depois da última vez, da arma no travesseiro, vão levá-lo, amanhã. Escuro demais para ver. O choro engasgado na traqueia. Você não responde, senta-se no concreto. Tenho de me aproximar, levanto a saia, meu peso em seu colo.
UMA CARTA DE AMOR
Evitei o momento de te escrever como naquele dia, como nos dias seguintes, porque tive medo de acessar essa dor, de encará-la de frente. Tenho me obrigado a ser covarde. Certa vez meu pai teve um acidente de moto e ficou dez dias internado no hospital. Já em casa, eu o ajudava a fazer os curativos. As costas er…
Me conta o que achou?
até o próximo ano. um beijo!