que só esquece do mar quem mora perto do mar Bruna Mitrano
Tenho feito vídeos. Pequenos filmes da Avenida Brasil. Quero fazer filmes de estradas, avenidas, ruas, ruelas, vielas. Do subúrbio. Daquilo que é feio, esquecido, absoluto. Das plantinhas que rompem o concreto, que se espalham, abandonadas. Tenho interesse por tudo que é ordinário. Pelo encardido dos muros. Quero fotografar pedaços da cidade. As esquinas vazias. Quero rodar como le camion. Você me lembra que também há uma cena de caminhão no meu livro. É verdade. Eu não me lembrava. Uma cena que é justamente o retorno ao subúrbio. As vielas vazias. Queria fazer um filme no caminho debaixo da linha do trem. Ali onde ficam os vendedores. Filmaria o momento exato em que o trem passa, o barulho ensurdecedor. Queria fotografar o que vejo. Clic clic clic. Um vendedor de abacaxis. Clic clic clic. Uma casa com um portão improvisado de madeira. Clic clic clic. Vou criando filmes daquilo que vejo, guardando na memória, ficção que não encontra lugar, que se desintegra nas sinapses, não pertence a nada, ninguém. Só a mim.
Sei, na melancolia dos dias que invento: é tempo de escrever.
Meu livro é um livro de lugar. De um Rio sem mar. De uma cidade carcomida. Na chuva, olhei para o lugar em que cresci, uma espécie de melancolia bonita e abandonada. A escola em que fiz o jardim. Uma praça vazia. Então senti um afeto distante. Como posso juntar a abstração do meu mundo com a violência do concreto do mundo? É isso que tenho tentado fazer, de alguma maneira. Expressar essa beleza e essa dor de existir num planeta estrangeiro. Não pertencer a nada nem a ninguém.
Não há importância no que sou. Não sou nada. Creio nisso com muita firmeza, na minha insignificância, na ausência de um self. Não sei o que é químico, biológico ou social. Não sei como o conjunto de pílulas coloridas transforma meus neurônios. Eat me. Tenho muitas sinapses que, infantis, esqueceram de se desligar. Meu cérebro é um curto-circuito, uma massa elétrica. É o que a ciência diz. Essa medicina que me despreza e que desprezo. Um experimento de laboratório. Quem disse, você me contou: se somos o que há de mais inteligente, então não há esperança.
Me olho no espelho. Me assusto por dizerem esta sou eu. Que essa coisa, minha pele, me representa. Como na náusea sartreana, mas menos ociosa e acadêmica e com mais saliva e asfalto. Das muitas coisas que compartilhamos, MD, uma delas é a revolta e o ódio de classe.
Através do espelho. Drink me. Dizem você é tão diferente, exótica, incomum. Isso quer dizer que não sou bonita. Se tivesse nascido na época do renascimento, talvez fosse uma peça especialmente esquecida de Sandro. Os ossos que se projetam, minha ninfa humanoide. O que sou não existe. Mas sei que existo.
Fatos & queixas:
chega a ser engraçada a ironia de, pouco tempo depois desse texto, meu celular ter pifado do nada. enquanto estava sozinha. em outro estado. pois é. De certa forma foi um alívio estar sem contato com o mundo, e principalmente sem redes sociais, mas é também um inconveniente. A questão das redes sempre foi uma contradição para mim: uma maneira de me expressar e de estar em contato com pessoas que compartilham comigo tantas coisas, mas um ritmo que me atordoa, uma lógica que me irrita. Sinto que não sei estar nesses espaços da maneira que deveria.
Há um desejo constante de desaparecer.
E infelizmente precisei dar uma pequena pausa nas minhas filmagens.
Para ver:
Assisti a um filme no Mubi, Um anjo à minha mesa, que conta a história de Janet Frame, escritora da Nova Zelândia. O filme retrata a infância pobre, os irmãos, a descoberta dos livros. Frame, após uma tentativa de suicídio, foi diagnosticada incorretamente como esquizofrênica e internada durante oito anos em um hospital psiquiátrico. Ela sofreu mais de duzentos eletrochoques, o que a deixou completamente traumatizada. Pior, Janet foi colocada na fila para uma lobotomia. Quando estava prestes a ser lobotomizada, no entanto, ela ganhou um prêmio literário e pôde sair do hospital. Isso mesmo que você leu.
Só consegui assistir a 2/3 do filme, que é lindíssimo, para assistir o resto depois. Chorei muito, não consegui dormir. A história dessa mulher me dói fundo. Porque tenho certeza de que tive muita sorte. Se tivesse nascido em outro tempo, em outro lugar, não teria um destino muito distante de Janet.
Janet, queria que tudo tivesse sido diferente para você.