

Discover more from ÚnicaLinha
Sala de espera ou Dez passos para um diagnóstico #ÚnicaLinha15
Sala de espera ou Dez passos para um diagnóstico
[primeira parte]
Dia 01
Os alimentos são pedra
Os alimentos são borracha
e vou caindo
Ninguém fala nem se olha. Eu não falo nem olho. Está frio, mas aqui dentro é quente. Na TV minúscula, uma novela de vinte anos atrás. Tenho medo. Se ela me perguntar, me avaliar, não sei o que dizer, como dizer. Se eu estiver sozinha. Ninguém fala ou olha. Também não sei olhar. O que vou dizer? Que eu nasci do lado errado, que sempre fui estranha, desde o momento que sei lembrar. Que eu nasci do lado errado. Meu laudo diz várias palavras. As palavras, em um laudo, aprisionam. Dispõem, definem. Isto sou eu? Tenho medo. Aqui, no mediastino, cresce e nasce um pássaro afogado. Para tudo é preciso comunicar. Mas sou uma bolha. Tenho carne e queria ser abstração. Mães esperam os filhos. Ele me espera. Só assim, de outra forma não teria como ser.
Escrevo para dar movimento. Para ser movimento. Quando escrevo o resto fica muito parado.
O que tem que alguns sons são insuportáveis. Que uma borboleta
Quero saber, mas tenho medo. Seja o que for.
Dia 02
Dessa vez fico em outra sala. O chão é verde-carpete. Estou muito ansiosa.
Ansiosa, insira essa palavra dez vezes ao longo da página, editor.
Tenho muitos medos, não sei quais. A ansiedade borbulha de dentro para fora, feito lava. A ansiedade me engasga, sufoca. Na outra sala não tem ninguém, só um ou outro que passa. Hoje vejo crianças. Um cheiro esquisito. Algumas vozes. Um aviso na parede pede Silêncio! Profissionais em atendimento. Quadros coloridos de animais. Acho que uma criança foi ao banheiro vomitar. Ou escuto tudo errado. Escrever acalma o corpo. Preciso escrever antes de falar. Fiz uma lista com tinta roxa em papel cor-de-rosa. A lista tem uma página e meia, tamanho A4. As salas são numeradas. Agora só escuto o som do ar. E do elevador. Esqueci qual era o número daqui: 1113.
...
Fiz três testes. Dois de linguagem e um de padrões. Fazer testes é como ser um macaco de laboratório. Você não sabe bem o que faz ou por quê.
...
Talvez essa série se chame: sala de espera ou dez passos para um diagnóstico.
...
Não conheço o rosto das pessoas. Percebo que raramente estou olhando para elas. As pessoas são pés.
Dia 03
Esqueci meu caderno. Já é junho. Esse mês me assusta. É o meio de um ano. Dessa vez uso fones. A novela me irrita. A salinha tem mais três pessoas. É um alívio não ouvir certos sons. Estou com dor de cabeça, uma bem fraquinha na cabeça inteira. Muitos pacientes são crianças. Gosto da neuro porque ela não dá sorrisos condescendentes, então não preciso dar também.
...
Tenho dúvidas sobre tudo.
Dia 04
Com enxaqueca faz três dias. Todos os barulhos me exasperam. Queria que tudo terminasse logo. Minha ansiedade por respostas. Mas é a primeira vez que estou tranquila e venho sozinha.
A criança na minha frente dorme de boca aberta. A dor que eu sinto é atrás dos olhos. Falaram que ia chover. Trouxe um guarda-chuva pequenino, vermelho feito minha unha, feito minha blusa. Queria dizer feito minha calcinha, mas não é verdade.
Me uso mais uma vez para um experimento. Esse corpo é um experimento da vida, então brinco de transformá-lo em arte.
A criança ronca. Outra chega, escuto sua voz antes de vê-la. E agora mais uma família. Não há cadeiras suficientes para todos nós. Alguns pais estão com um adesivo escrito visitante. Entra um rapaz agora. Dou uma olhada para me certificar. Consigo ouvir tudo ao mesmo tempo, é enlouquecedor.
...
Me sinto meio burra fazendo os testes. Quando não consigo, me dá vontade de deixar para lá. Não tenho paciência para jogos. Expliquei para ela, no início: não sei jogar nada. Estou preocupada com a demora. Confesso que tenho pouca esperança. Os dias são meio longos, ásperos.
Dia 05
Não anotei nada na última semana. Foi a primeira série de testes que gostei, talvez por envolver desenhos e imagens. Ela me disse que é provável que a próxima semana seja a última. Levei comigo um questionário para responder com minha mãe. Quase não me recordo da infância. E descobri que tenho percepções que se perdem ao meu respeito. Me disseram, com unanimidade, que não cumprimento. Verdade que não é algo natural para mim. Quase nada é, socialmente. Mas eu achava que cumpria bem os ois, bom-dias e boa-tardes, no geral. Descobri que cumprimento mal e pouco.
...
As pessoas falam demais. Mesmo que eu só precise olhar, concordar balançando a cabeça e grunhir, isso me deixa muito cansada. Hoje a senhora do trabalho falou tanto comigo que me deu dor de cabeça. Não entendo quase nada do que ela diz. Já o trabalho em si me dá dor no corpo, uma exaustão. Gosto de ouvir as pessoas, principalmente quando vejo que elas precisam falar. Mas tenho muita dificuldade de manter uma postura ativa de escuta, de dar os sinais e as respostas adequadas. Vejo que as pessoas têm muita facilidade em ser agradáveis ou manter pequenas conversas com conhecidos e estranhos, mas para mim é muito difícil. Exige muito esforço e isso me esgota. Há toda uma sutileza de informações que não consigo captar e soo muitas vezes inadequada, rude ou desagradável. Minha maior dificuldade é nos grandes grupos, ainda mais quando, integradas, eles não fazem grande esforço em integrar. É terrível ter de erguer a voz para dizer “oi” ou “bom-dia”.