Tudo eu inventei, inclusive você
sobre mimetismos mnemônicos, não ter medo do abismo ou, ainda, o amor
Subimos até o telhado. O céu, imensidão sem luzes. Digo: amanhã. Depois da última vez, da arma no travesseiro, vão levá-lo, amanhã. Escuro demais para ver. O choro engasgado na traqueia. Você não responde, senta-se no concreto. Tenho de me aproximar, levanto a saia, meu peso em seu colo.
Subo até um monte. No topo há uma árvore. As folhas são borboletas que se desprendem no ar. Mimetismo mnemônico. Estou correndo ao redor do tronco, a grama macia nos tornozelos, há um piquenique em Ardis e estou bem.
Quando tenho medo, retorno a esse lugar, subo o monte, corro, sempre da mesma maneira. Quando tenho medo, vejo borboletas nas pálpebras fechadas.
Minha memória não tem rostos ou lugares, só luzes e sombra.
Um quarto. Aquele hotel antigo, estranhamente vazio, só para aquela noite. Homens discutem, armas em punho, em um dialeto estranho, numa ruela escura lá embaixo. Estamos deitados. Eu só me lembro do escuro lá fora e da luz do banheiro, a sensação do papel de parede, mas não o papel de parede. Lembro de perguntar, sob os lençóis: o que é isso. E rirmos. Tinha sido uma péssima e assustadora escolha. O sono dá a tudo um ar de sonho. No dia seguinte vamos para o aeroporto.
Você tem de carregar, nossas malas e eu, doente, até o nosso apartamento alugado. Descemos para comer no lugar mais próximo daquele bairro desconhecido. O restaurante se chama Lollita, com dois éles. O lugar muito banal, vazio, exceto por um casal, um homem muito velho, de terno, e uma menina muito nova. Você me diz que ninguém acreditará nisso, se eu contar, que seria um exagero. Ao se levantarem, a menina tenta pegar na mão do homem, mas ele não cede, evita seus dedos, gesto que faríamos muitas vezes como uma piada só nossa. Você negando minha mão para reproduzir aquela cena nabokoviana. O absurdo da realidade. De fato, nunca contei, em ficção, nunca pude contar todo o absurdo do real.
Dar as mãos. Minhas amigas de infância buscam a minha para atravessar a rua. Movimento que se repete muitas vezes. Porque me conhecer é saber da minha distração constante no tráfego.
Há uma linguagem própria entre os seres. Isso que me dói mais: a linguagem. Porque a memória é coisa só nossa, uma verdade particular. Não concordamos com quase nada. Digo: isso aconteceu em São Paulo. Você diz: isso aconteceu em Botafogo. Digo: eu que tive essa ideia. Você diz: eu que dei essa ideia. Você me faz provar o que se tornaria meu drink favorito: gin tônica com abacaxi. Foi naquela viagem. Gin tônica com abacaxi. Essa é a bebida do agá agá. Gosto de ver a careta das pessoas ao provarem minhas bebidas amargas. Depois volto ali. Retornar a um espaço na esperança de ter as mesmas sensações, a mesma experiência, é sempre uma decepção. Um lugar nunca é um lugar.
Fui quatro vezes a São Paulo. A cada vez, uma cidade diferente, que nunca pude unir em um quebra-cabeça. Será assim com todo mundo, essa lupa mal-acabada, incapaz de criar paisagens. Incapaz de formar rostos.
Consigo pensar em cada pedacinho da sua pele, mas não consigo uni-la para formar uma pessoa inteira. Se pintasse minha mente, ela seria feita de cores abstratas, sons e gestos.
Gestos de ternura.
Muito raro conhecer o tédio. Meu mundo interior me distrai. Escrevo nos pensamentos quando não posso escrever no papel. Observo os objetos, as pessoas. Ser estrangeira é tentar compreender, a todo momento, o que o outro diz. Ou quer dizer. É tão complicado. Você me diz: o mundo não foi feito para pessoas como eu e você. O mundo é deles. Deles. A ciência não sabe nada sobre o meu cérebro. Nada. Isso me assombra. Só de ser mulher, e o resto.
Quando descobri que a verdade da ciência era também uma verdade inventada social e politicamente. Tchaikovsky no ar, os tiros de canhão. Foi uma revelação.
Às vezes desconfio que sou nada mais do que matéria-prima para aquilo que escrevo. Vivo para que possa criar narrativas, o que será utilizado e descartado, um rascunho.
A pesquisa e a ficção envolvem um processo de memória. Lembrar dos acontecimentos, apreendê-los.
Na hora de dormir, no escuro, vou escrevendo nos pensamentos. Escrevo para não ter de dizer a ninguém, para dizer a mim mesma, para no fundo esquecer a solidão ou cortejá-la. Não sei de mais nada. As palavras não significam nada. Meus sonhos são mais vívidos e mais interessantes do que tenho vivido acordada. Não quero chegar ao ponto de sobreviver a mim mesma. Quero escrever e para isso é preciso pular no precipício, não ter medo do amor.
Pender sobre o abismo, mas não ceder.
As fotografias dessa cartinha foram feitas por mim, aos 10 anos de idade.