“Vous dites que vous êtes perdu. Vous dites que vous ne savez pas à quoi, dans quoi vous êtes perdu.”
[Você diz que está perdido. Você diz que não sabe em quê, dentro de quê você está perdido]
M.D.
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“He vowed to himself that he would pay no attention to the invitation of the abyss”
[ele jurou a si mesmo que não daria atenção ao convite do abismo]
V.N.
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Se me perguntam o que quero fazer, é muito simples: quero escrever.
Há um grupo de turistas franceses aqui. Todos jovens. Acabo por me distrair olhando as pessoas. As pilastras de mármore. E ao mesmo tempo não olho para nada. Noções comuns, mas que invertemos com frequência: o mundo é muito grande. A vida, muito pequena. Escrever é se colocar frágil, vulnerável. Me preocupo pouco. Acho que tenho pouco a perder. Minha escrita se coloca além de qualquer coisa, acima de qualquer coisa. Então não me importo. Me importo com minha arte. Vejo o novo livro como um processo em construção, um processo maior que é minha própria escrita, a escrita do futuro.
Quero viver porque isso me permite escrever.
Quero romper com a escritora suicida que vive – parasita – em mim.
Um escritor morto não escreve.
Repita comigo: um escritor morto não escreve.
No entanto, tenho pensado mais e mais que gostaria de simplesmente não ser nada. Não me entenda mal. Viva, só coisa alguma. Sinto alívio por não ser nada. Ainda assim, por que quero fazer arte, meu deus. Não podia ter surgido outra coisa quando o primeiro neurônio se rompeu nas minhas sinapses.
Nas muitas mudanças, fui me desfazendo de objetos. Abandonando muitas memórias. Do que tenho, são os papéis, os livros, os gatos. Aprendi a caber em pequenos espaços. Em uma dessas partidas, deixei a maioria dos livros para trás. Há pouco tempo soube que se desfizeram deles. Não sei quando os teria de volta, mas se soubesse, se tivesse sido avisada, poderia ter resgatado alguns (apenas os autores brasileiros, os livros de poesia). Não pude me despedir. É um rompimento bobo, piegas, mas que me flagela um pouquinho. As assinaturas, as marcações, todas perdidas. As frases que eu memorizava apenas na primeira leitura, uma memória esquisitíssima.
Você estará sozinha, eu me sussurro, venenosa.
Ao mesmo tempo tenho vontade de me desfazer de metade dos meus livros. Queria me desfazer de tudo que tenho. De tudo que sou.
Não consigo olhar para o trem em movimento. Os vagões chegando na estação me causam vertigem. Posso cair nos trilhos, suicida e imprudente.
Morei em muitas casas. Esta é a décima segunda. Todos os vizinhos são loucos. Ouço suas vozes. Uma vizinha acompanha a missa de madrugada e, entre preces, esbraveja: cala a boca! cala a boca! Desconfio que só eu a escute. Outra vizinha liga à noite para o filho na Austrália. O resto do dia discute com o cachorro. Um vizinho que não escuto, mas vejo, vez ou nunca, circulando sisudo pelos corredores. São todos idosos que moram só. Neste prédio todos são solitários. As vizinhas que mais escuto são neta e avó. Elas brigam todos os dias. Nenhuma das duas parece sair de casa.
Agora tenho um novo vizinho de porta. Ele se mudou há pouco. Também é sozinho. Primeiro o escutei falando com a vizinha-avó. Então observei, pelo olho mágico, a nova fechadura ser instalada, às seis e quarenta da manhã de um sábado. Desde então não o vi ou ouvi. Os outros vizinhos são silenciosos e invisíveis. Todos, todos irremediavelmente sozinhos. No entanto, uma vizinha. Essa sim. Parece feliz. Ela fuma e me diz: bom dia, linda!
Ainda é muito difícil. Dizer. Meu rosto queima pelo hábito do silêncio. O silêncio ainda é constitutivo do que sou.
E a literatura ainda é a única coisa que me interessa. Viver para escrever. É só o que eu queria fazer, no fim. Mais nada. Escrever. Pintar quando as palavras são muitas. Ser duas mãos muito brancas, muito calejadas, muito simples.
Certa vez ele me deu uma tela enorme, naquele apartamento pequeno e abafado. Eu não o amava. Ele não me amava. Mas havia o desejo. A vontade dele de entrar no meu quarto. Eu não me incomodava com isso, que entrasse. Mas ele não sabia pedir. E eu não sei dar os primeiros passos. Queria que ele dissesse, esperava, mas ele não disse. E assim permanecemos em silêncio, naquele quadro quarto minúsculo enorme. Aquela tela em suas mãos. Ali, então, eu era assustadora. Era um mistério. Opaca. Ele era simples. Não me surpreendia. Era transparente.
Naquela praia invernal, eu vi, ele sofria de uma paixão impossível.
Assistíamos uma ópera quando ele comentou sobre aquela viagem, sobre as passagens. Fiquei sem entender. Que ele naquele país era impossível. Não disse nada, mas era impossível. Que eu não iria com ele, jamais.
Amar, para mim, é tão simples. Não sei insinuar nada. Disse que ele dormisse comigo. Entrei no quarto, era madrugada. Tirei as camadas de roupa. Tomei banho. Deitei na cama.
Dormir sozinha, num país estrangeiro, me deprime terrivelmente.
Eu o fiz perder o último trem mais uma vez. Mais uma vez. Ele sofria. Quando dirigia nas estradas vazias, e quando ria, é quando parecia mais bonito.
A Rússia me fez esquecer no primeiro dia. A Rússia sublimou tudo o que veio antes.
Tudo, uma brincadeira de criança.
Então o esquecimento. E o ódio, depois, talvez. Espero que você não pense em mim, nunca, jamais.
Romper com a tragédia que me constitui. Tentar uma felicidade singela. Apenas uma tentativa. Momentos de alegria. Para mim, o mais próximo da felicidade são as cores de determinadas sensações. Viver em paz é uma virada importante na artista suicida em mim, ainda que tenha de conviver com ela, explicá-la que precisamos existir para além da abstração: que somos matéria
E que há o desejo de viver.