Evitei o momento de te escrever como naquele dia, como nos dias seguintes, porque tive medo de acessar essa dor, de encará-la de frente. Tenho me obrigado a ser covarde. Certa vez meu pai teve um acidente de moto e ficou dez dias internado no hospital. Já em casa, eu o ajudava a fazer os curativos. As costas eram carne viva com uma fina camada de pus que eu retirava com um algodão e que se renovava a cada dia. Meu coração é mais ou menos assim, uma ferida aberta.
Três semanas e é primeira vez que sonhei com você. Você se deitava na minha cabeça, no meu rosto, ao redor do meu pescoço e eu sorria. Eu dizia sim, é um engano, a Hildinha não morreu, ela está bem de novo e teremos mais uma chance de estar juntas. São exatas três semanas e talvez por isso você tenha aparecido para mim. Chorei ao perceber que o sonho não era real.
Há uma semana recebi o certificado da sua cremação. Algo simbólico, apesar de não me remeter a nada além de um certificado de morte. Tive de preencher mais um formulário para tentar conseguir o reembolso. Mexer nisso tudo me dá vontade de desistir. Me vem muitas vezes a imagem do seu corpinho morto. Feito uma afirmação de que é real. Porque por vezes minha cabeça esquece e me diz que você vai voltar. Queria ter estado ao seu lado, mas quando te entreguei para a internação, você não estava mais ali. Você não reagia ao meu chamado. Mas não é isso que quero lembrar. Quero me lembrar da nossa rotina. Eu me levantava, você vinha atrás de mim e a Ada vinha atrás de você. Você era o espelho dela. Nos primeiros dias, a casa vazia, ela fez suas bagunças. O que é isso senão uma maneira de ter saudades. As saudades podem ser uma alegria melancólica, uma nostalgia dolorosa.
Há um filme espanhol de uma menina com um gato, perdida, sem lar. Você e eu éramos assim. Éramos nós duas contra o mundo, apesar do mundo, caindo, na beirada do mundo. Nós combinados de nos mantermos vivas. O que é existir? Matéria? Memória? Memória na matéria?
Meu cérebro fica me dizendo que, de alguma forma, a culpa é minha, que se eu tivesse feito algo diferente, você estaria aqui. Sei que é uma crueldade inútil. Uma maldade comigo mesma. Minha mãe dizia que éramos (somos?) muito parecidas, que passamos por tantas coisas e aceitamos as circunstâncias. Você foi muito forte. Tantas vezes, Hildinha, você confiava a vida inteira em mim. O luto é uma confusão de tempos verbais. Te dizer no passado é atestar que você não existe mais. Olhando para você, tive certeza de que o amor existe entre os seres, que só pode existir. Você me olhava com tanto amor. Mesmo doente, você se deitava em mim e ronronava. No último dia, você me chamou, e ronronou tanto, tanto. Acho que você já sabia.
Tudo que imaginei para minha vida, Hildinha, você e sua irmã estavam comigo. Eu queria um apartamento com uma janela grande para você pegar o sol que tanto amava. Sempre tive vergonha dos meus pequenos sonhos. Eu só queria uma janela e isso não pude te dar, no fim. Quem vai exigir água fresquinha do filtro? ou me consolar quando choro? Você é única, insubstituível, extraordinária. Você era parte de tudo.
A casa está tão silenciosa sem você. Não queria mexer em nada, nem lavar as roupas que ainda têm os seus pelos. Quando te vi, já morta, foi muito difícil sair daquela sala. Beijei o seu rostinho, passei a mão nas suas orelhas, mas não era você que estava ali, eu sabia. Não era mais você comigo. Você estava silenciosa e gelada, e você era quente e escandalosa. Mesmo assim foi difícil ir embora. Eu repetia que não fazia mais sentido, eu dizia: é irracional.
A sua irmã fica confusa. Ela cheira suas coisas e olha ao redor à sua procura. Ela vai aos lugares que você costumava dormir e te procura. Procurei pela sua escova para ver se ainda encontrava tufos de pelo seus – essa é a loucura do luto. Outro dia vi sua plaquinha de identificação e caí no choro que vinha ensaiando todos os dias. Hildinha, evito me questionar se eu deveria ter feito algo diferente. Coloquei sua plaquinha no pescoço, em um cordão de prata que tenho aqui. É uma das poucas formas de ainda te ter. De resto, há um bigode branco, alguns pelinhos perdidos. Ainda não comprei novas flores. Olho para as antigas e percebo que não vou mais comprá-las para você. Fui guardar o saco de pão, mas percebi que você não está mais aqui e que não há razão para guardá-lo.
Sei que o luto é uma dor que não finda, apenas se acomoda no corpo. Sei disso como sei que a morte é a completa impossibilidade. Já tive tanto medo de te perder, mas te perder mesmo é infinitamente pior. Hildinha, você me chamou até o fim. No dia anterior, me sentei ao seu lado. Queria ter dormido – não dormido – olhando para você, apesar do seu rostinho de doente. Você não era mais minha ali e não merecia sofrer. Esse fim de semana, encontrei uma borboleta azul no Largo do Machado. Primeiro a colocamos na horta, mas percebemos que ela estava morrendo. Eu a trouxe comigo e a deixei confortável para ela pudesse morrer. Ela reagia à minha mão quente, mas era incapaz de voar. Queria que você parecesse tranquila no fim, como a Morpho que pude deixar morrer na minha mão. Queria poder ter te amparado assim. Queria que você visse o futuro, que estivesse nesse futuro. Eu ainda preciso assimilar esse vazio. E só posso fazer isso escrevendo para você, porque de alguma forma você ainda está dentro de mim e estará sempre.