ÚnicaLinha #06 - infância, memória e perda
“Here's the person I want. Hullo, person! Doesn't hear me.” V.N.
Minha amiga B.
B. era minha melhor amiga. Eu não me lembro do seu rosto. Mas, eu me lembro de seu cabelo crespo trançado, da textura de suas mãos e de como ela parecia pequenina em sua cadeira de rodas. Ela me disse que era paraplégica, porque uma tartaruga tinha mordido seu pé na praia. Eu não sabia se acreditava, mas conseguia imaginá-la na praia sendo mordida por uma tartaruga enorme. Eu tinha sete anos. Ela me contava sobre a fisioterapia para voltar a andar, sobre sua mãe adotiva e sobre uma mesa de cirurgia repleta de sangue. Eu contava a ela minhas invenções. Todo dia ela queria ouvir uma história diferente sobre minha vida: eu era uma bruxa e estava na escola municipal para me disfarçar. Ela parecia acreditar e, mesmo quando duvidava um pouquinho, nunca deixava de me ouvir. Descobri que a palavra podia conectar e transformar a vida em qualquer outra coisa que fosse só nossa. Eu me lembro vagamente das suas muletas, da sua cadeira lá na frente da fila na hora do hino e da janela da sua casa repleta de plantas. Eu nunca entrei, mas olhava bem para o terceiro andar daquele prédio antigo, que um dia serviu de conjunto habitacional, e me perguntava como, no meio de tanto verde, era possível ver se estava sol ou não. Também não sei como sua mãe, uma mulher já idosa, fazia para descer e subir com B. em uma cadeira de rodas por três andares sem elevador. Mas, aos sete anos, isso não era algo que me afligisse. Depois, eu não sei. Fomos para turmas ou colégios diferentes.
Só́ muitos anos depois eu soube. Minha mãe me disse: B. não podia andar porque tinha sido abusada quando bebê. Aquelas palavras afundaram da traqueia até o estômago e se alojaram ali. Eu tinha doze anos. A verdade gelada e amarga me doeu uma dor física. Aquilo me destruiu. Fez com que se rompesse um fio qualquer da infância.
Fiz o que pude: escrevi cartas, escrevi poemas para uma criança que nunca mais vi, porque, apesar de pouco, era só a palavra que eu tinha. Era só a palavra, afinal, que nos importava quando de mãos dadas inventávamos a vida.
Ontem, essa história me voltou e, com ela, a mesma dor física. A ferida sempre aberta. Queria saber onde ela está, mas nunca mais nos vimos. Nem mesmo reconheço seu rosto. Mas a amarei para sempre. (agosto de 2020)
Sally Mann. “At Warm Springs”, Immediate Family, 1991.
Olá,
Alô, alô. Você pode me ouvir? Voltei.
Depois de um tempo de silêncio, fiquei pensando no que trazer para cá. Tenho esse problema: muitos textos nascem de mim, umas palavras que crescem sem controle, tomam conta das janelas, e eu não sei muito bem o que fazer com eles.
Ano passado, tive um momento de investigação da infância. A infância é um aspecto bastante presente na minha escrita. Dessa investigação surgiram alguns poemas e outros textos em prosa. Resolvi que seria bom retornar a esses escritos, compartilhando um deles com você, para depois falarmos de outros assuntos.
Afinal, tudo começa na surpresa (e na dor) da infância.
Imagem & cena:
Já que o tema é infância, não poderia deixar de trazer uma fotografia de Sally Mann, uma fotógrafa estadunidense que criou uma série chamada "Immediate Family", fotografando principalmente seus filhos pequenos. Acho interessante que além do tema da infância, ela trata muito de decadência e morte.
Para ler:
Uma conversa entre Carola Saavedra e Aline Bei no Jornal Rascunho falando sobre infância e silêncio.