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Essa é a segunda e última parte de Sala de Espera ou Dez passos para um diagnóstico.
“I took a deep breath and listened to the old brag of my heart.
I am, I am, I am.”
Sylvia Plath
Dia 06
Hoje acordei cedo e consegui estudar bem. Fui ao sebo comprar postais. Na sala, a novela antiga, a criança de sempre, hoje acordada. Estou tranquila. Todas as situações podem se tornar cotidianas, até as mais desconfortáveis.
As pessoas são todas esquisitas. Somos um bando de esquisitos. Um rapaz segura o próprio corpo, como se seu tronco estivesse prestes a fugir. Dois meninos mexem os pés. Escrever é minha forma de me mover. Quase todos olham para a tevê. Não consigo. Fico aqui e não na outra sala, mais silenciosa, quase para me castigar. Ou talvez porque goste de observar os outros, ver o que há deles em mim e de mim neles.
Perguntei a ele se minha roupa estava infantil. Ele disse que sou sempre um pouco infantil. Eu me sinto bem assim. O rapaz de fones chegou. As crianças falam muito.
...
A última sessão envolveu dois testes e uma série de questionários. O resultado deve sair essa semana. Amanhã eu opero. Só tive a confirmação final hoje. Estou muito tranquila.
...
Tenho de fazer mais uma sessão de avaliação essa semana. Ela disse que precisava tirar algumas dúvidas e aplicar mais alguns testes. Quantas sessões já foram?
Minha perna direita está doendo um pouco e não sei por quê. Vou escrever uma lista de sintomas. Preciso pensar nos prejuízos que isso me causou. Estou um pouquinho cansada hoje, mas feliz que esse caderno está acabando e junto dele mais uma das etapas da minha pequena vida estranha. Meu umbigo dói e me sinto um pouco como Nabokov escrevendo na cama. Está quente, mas não consigo sair das cobertas. Fico muito bem tendo de ficar parada. No silêncio. Existe um mundo inteiro dentro de mim, por isso raramente me entedio. Nunca fui de me entediar, nem mesmo quando criança. Sempre achei o mundo estranhíssimo. É tão estranho pensar que nos abrem, tiram coisas lá de dentro e nos fecham de novo. Ou que o corpo já comece a fechar um buraquinho de piercing aberto em meu corpo há sete anos em um trabalho impressionante de vinte e quatro horas. Ou que um gato possa compreender tanto e muito mais do que muitos seres humanos. Ou que a palavra, só a palavra importe no fim das contas – a vida a palavra a palavra a vida.
Dia 07
Fizemos mais três testes. Percebo que não tenho uma boa memória para sequências sem sentido e que sou péssima montando imagens. A última imagem era de uma borboleta vermelha, da mesma cor da borboleta de vidro do túmulo de VN. Respondi perguntas de conhecimentos gerais, mas não sabia como explicar o significado de alguns ditados. Para mim, as outras pessoas são um mistério. Ser eterna estrangeira. L. diz que estranho tudo e é verdade. Talvez ser artista tenha sido inevitável. Nada é natural para mim. Talvez a avaliação me ajude a entender essa sensação melancólica de exílio. Uma nostalgia por um passado que não existiu. A pergunta, latente: como fazem os outros? Como tudo parece tão fácil, tão instintivo, para todo mundo?
Dia 08
Era para pegar o resultado hoje, mas só terei o laudo na próxima semana. Hoje está cheio. São crianças, adultos, vozes, o carpete verde. Escrito na porta do banheiro: preferencial.
Dia 09
O resultado não me causou nenhuma emoção ou surpresa. Não sei como será ter o laudo em mãos. Nossa última conversa foi sobre sociabilidade. Depois de todo sofrimento emocional, o pior. Na escola, já fiquei seis meses sem ter um colega sequer. Era comum. No recreio, fugia para algum canto qualquer para ler. Demorava algum tempo para a solidão me atormentar. Tinha dificuldade para fazer amizades e quando fazia um ou dois amigos, me dava por satisfeita. Demorava a me apegar, então me apegava em demasia. Não queria que as outras pessoas desarrumassem a dinâmica que eu já havia estabelecido. Conversar com uma pessoa chega a ser fácil. Conversar com um grupo me desnorteia. Ela me explicou o que preciso fazer a seguir, me disse se eu concordava com o resultado. Respondi que sim.
O diagnóstico é como uma pecinha primordial que se encaixa, me permitindo ver, finalmente, a imagem formada.
Eu só não sei ainda o que fazer com ela, socialmente. As pessoas dizem: mas você é normal! Como se 1. Isso fosse um elogio ou algo bom; 2. Como se eu estivesse dizendo que sou anormal. Não me importo com a normalidade. Em nenhum momento penso sobre isso, a não ser quando as pessoas fazem questão de me lembrar. Não me senti triste com o diagnóstico. Mas percebi bem rápido o que viria dos outros. Já vivi muito estigma por causa da saúde mental e agora preciso lidar com outro, ainda mais complicado.
As pessoas dizem: qual a importância do diagnóstico? Elas não entendem o que é viver uma vida se perguntando: o que tem de errado comigo? Por que é tão difícil viver? Como fazem os outros?
O diagnóstico possibilita que eu seja um pouco mais compreensiva comigo mesma. Ele não me limita, não me define, não muda quem eu sou ou o resume. Mas possibilita que eu tenha um tratamento mais adequado e que talvez eu tenha uma vida melhor. Socialmente, por outro lado, não me traz vantagem alguma, senão estigma, preconceito e afastamento por parte das pessoas. Minha vontade é só seguir, num rodopio de dança. Não tenho vontade de me esconder e nem de me explicar.
Dia 10
Acordo neste domingo chuvoso e frio. Fui a dois médicos essa semana. Uma experiência terrível. Uma experiência muito boa. Mas cansei de falar. Minha jornada termina. Vinte e cinco anos, sete meses e sete dias para entender um pouquinho mais o mistério de ser quem sou.
Eu sou eu sou eu sou.